domingo, 16 de dezembro de 2007

Falando como um hipotálamo inconveniente.

Frank Sinatra não foi um ser humano. Foi algum pedido atendido de uma mulher desesperada por um homem perfeito... daí veio o blue eyes. Minha dúvida é: que mulher com uma mente tão desenvolvida pediu um cara como ele? No meu simples julgamento, não há rapaz melhor para externar seus sentimentos por uma moça em especial. No podcast, ele moendo com Loves been good to me. Clica em play e vai lendo o conto. Acabou a música, mas o conto não? Clica no play de novo, faz favor!

p.s.: dedico a uma amiga, a Gaybis que anda odiando algumas substâncias produzidas pela seu hipotálamo e adora ir na casa do Pedrinho.


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No canto da festa, o rapaz pensava no seu hipotálamo. Ele já tinha decorado para quê que servia aquela amêndoa embaixo do tálamo: "controla a temperatura corporal, o apetite e o balanço de água no corpo, além de ser o principal centro da expressão emocional e do comportamento sexual"; e ele odiava seu hipotálamo no momento, mas, no fundo, gostava dele por não lhe dar um dúvidas do comportamento sexual: ele era hétero. Entretanto, nem isso diminuía sua raiva pelo seu próprio hipotálamo.

Hipotálamo, este, que se comportava muito mal nos últimos meses. Um pé no saco. O confundia, o estressava, o deixava triste por nada, o deixava alegre por ser livre... não tinha um comportamento contínuo, não seguia uma linha, nem que fosse depressiva-compulsiva: ele não se decidia. Convenhamos que ele passou um período de adaptação em relação ao último relacionamento coordenado por ele, mas, peraí! - pensava o rapaz - aí já tinha virado bagunça.

O rapaz tinha encrencado que seu hipotálamo era o responsável pelo seu faro por outras mulheres. E estava errando demais: deixava ele ansioso ao ver uma nova possibilidade, deixava ele nervoso na espera por notícias de uma nova possibilidade, e, no fim, sempre tinha apontado para a mulher errada.

O show continuava e sua cara de insatisfação piorava. O seu hipotálamo, na melhor das intenções, o avisa que isso estava espantando as mulheres e que chamaria o sono já já caso ele não parasse com essa bobeira. Agora o cara ria do coitado: agora esse maledetto quer ajudar, é? Então, o rapaz começou a pensar em tudo que estava acontecendo, todos os seus relacionamentos até o momento. Em um julgamento um pouco superficial, achou que não tinha feito lá muita sacanagem para merecer tamanha sacanagem do seu hipotálamo.

A festa continuava, ele decidiu que ia convidar alguém para dançar, sem pensar no que já tinha acontecido em seus relacionamentos. Seu hipotálamo, inconveniente, não diz nada. Ele liga o radar, com a ajuda do inconveniente, e procura as moças. Acha uma, cruza o olhar com ela, ela ri, o hipotálamo cuida de fazê-lo suar um pouco, dar um pequeno nó na barriga e encher seu coração de dúvida e uma dor estranha. Seria uma ligação com o seu passado que o hipotálamo estava tentando deixar conectada? Por um segundo, percebeu que quem estava com mais medo de toda essa nova vida era o maldito pedacinho de massa cerebral abaixo do tálamo.

Riu dessa pequena amêndoa com tanto poder que, apesar de tanto, é mais covarde que o resto. Disse para o seu hipotálamo: "calma! Eu estou no comando agora...", e, na hora, não titubeou ao analisar se uma pessoa que tem um relacionamento tão próximo com seu hipotálamo não precisaria de um psiquiatra. Apagou esse pensamento negativo para não trazer azar. E ele podia ser tudo, menos maluco. Tinha certeza.

Ao se dirigir ao encontro da moça, numa última tentativa desesperada, o hipotálamo fez suas pernas balançarem, dizendo que "não! Eu ainda não estou pronto!". Nada feito: balanceamento totalmente controlado e que, cuja vitória sobre o desesperado, foi externada com um belo sorriso do nosso rapaz! Falou para si mesmo: "parabéns!" e continuou, com uma confiança de um leão frente a sua presa.

Já a moça sentiu uma mistura de um pequeno prazer, uma vez que seria abordada com tamanho sorriso bonito, mas uma pequena dúvida sobre qual o motivo de tal sorriso. Pensou se ele não a confundira com uma grande amiga ou se ria para outra pessoa a não ser ela... e o rapaz chegava mais perto e tudo piorava... chegou sua visão a ficar turva. Olhou para o lado, pois uma amiga tinha-a cutucado e sussurrado em seu ouvido: "eu falei que ele estava te olhando!". Apesar de poder considerado um comentário que traga mais confiança, foi o inverso: ela queria gritar e, não sabia por quê, dar uma estrela e duas cambalhotas. Suas pernas quase estavam saindo sozinhas fazendo uma bela cena no salão quando o rapaz fala "com licença...".

Muito bem, conversaram. Ambos hipotálamos trabalhavam para o bem da tão nova relação. No fim, nem precisavam se beijar, abraçar, nem nada. As pequenas amêndoas de massa cinzenta dos dois trabalhavam uníssonas, como um relógio, com o mesmo objetivo. Se quisessem abrir uma sinfônica de hipotálamos, seria um sucesso: um assunto emendava no outro, uma dança era melhor que a outra, até os telefones de contato dos dois eram quase iguais - dois números diferentes - e da mesma operadora, o que significava que sairá mais barato os inúmeros minutos de conversação que terão.

Daquela noite, os dois foram embora sorridentes, contaram aos amigos das possibilidades, se encontraram novamente, e tudo mais... e os hipotálamos? No momento, em uma pretensiosa férias para os dois, mas, aquelas malditas amêndoas sabem que elas falam por nós. Esse é o problema.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Mudar a planta de lugar.

Destruindo a mente com Chemical Brothers (de novo?) com a música My Elastic Eye, do CD Come With Us de 2002. E agora com novidade. A partir desse conto, a música vai junto... abaixo tem um podcast com a música. É só clicar no play e começar a ouvir e ler o conto. Agora sim ficou tudo perfeito. Mais informações sobre esse podcasting que estou usando: Odeo.


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Do sofá, se via a planta. De todo lugar se via a planta. A maldita planta via tudo. No sofá, o inimigo "natural" daquela planta a olhava. Com um ódio gigante, apesar de ser uma bela samambaia gigante: presente da mãe para a nova casa. Ele chegava em casa a tarde, a planta o olhava de cima em baixo, como se estivesse verificando se ele tinha feito tudo direitinho no dia.

Nas manhãs de sábado, ela o encarava como se perguntasse se assistir todos os jogos de futebol que passavam na ESPN era o que ele queria para o resto da vida. Nas madrugadas, início das manhãs de domingo, ela o fitava e perguntava o por quê de sair todo dia e beber tanto. Não tinha como, a planta era uma extensão da mãe dele.

No trabalho, ele não sabia o que fazia mais: tinha que aguá-la, cortar as folhas estragadas, conversar com ela - conselho da mãe -, deixá-la tomar sol... e se não fizesse isso a mãe ia ficar muito triste e magoada. Já até imaginou que aquela samambaia era a extensão da mãe, como um espião para lhe mostrar o que ele andava fazendo. Mas, não podia simplesmente matar a samambaia, escondê-la, pô-la no quintal. Era como um cachorro de madame: só podia ficar em casa e tinha muitos tratamentos especiais.

Quando ele ia visitar a mãe, ela tinha mudado completamente. Não pegava mais no pé dele, não criticava seus amigos e "namoradas"; era uma mãe moderna: já utilizava ferramentas da Internet para saber da vida do filho, mas não falava mais do tanto de recados femininos ele tinha no orkut dele e de como ele não tinha uma namorada fixa ainda. Todo dia que ia lá, o café da manhã era especial, e, sempre quando ele chegava, ela perguntava da samambaia. Quando viajava, ele deixava a samambaia com uma vizinha que gostava de plantas.

Na volta para casa, ele pegava a bendita samambaia. A senhora que cuidava dela dizia que nunca tinha visto uma samambaia tão cheia de vida. Em um outro dia, ele, ao sair de casa, deu um beijo na samambaia por engano dizendo "tchau, mãe" e jura ter ouvido um "tchau, meu filho, vá com Deus!"!

Esse assunto já estava deixando-o louco. Foi a uma psiquiatra... o médico receitou para ele descanso. Que a samambaia era uma samambaia e a mãe dele era uma mãe. Disse que era o estresse do trabalho, a vida nova e a falta da mãe. O rapaz não tinha por quê não acreditar. Isso era uma sexta, ligou para a casa da mãe e disse que não ia visitar a família esse fim-de-semana... falou que ia com os amigos a um cruzeiro marítimo no feriadão que começava na sexta mesmo.

Chegou em casa, fez uma mala rápida e partiu para o aeroporto. Os amigos não acreditaram na notícia que ele iria também: era um cara trabalhador, muito responsável, gostava de coisas planejadas com antecedência.

Ao chegar no lugar e partir para pegar o navio, ele ligou para a mãe, a fim de avisá-la de que estava tudo bem e tal. Quando ela atendeu, parecia a samambaia dizendo: "como você se esqueceu de mim?". Não disse nada do esquecimento, mas a voz dela já denunciava uma tristeza sem fim. Perguntou para ela se tinha acontecido algo, ela, com aquela voz benevolente, disse um "sincero" não. Sincero com aspas pois era uma sinceridade que encobria a verdade: ela sabia que a samambaia estava sozinha.

Ele insistiu para a mãe dizer o porquê da tristeza. Nada! Nem com tortura. Ele desligou o telefone e ligou para a senhora sua vizinha. Ela falou que ajudaria, mas não teria como ela entrar na casa! Todavia ela falou que cinco dias ela sobreviveria. Ele chegaria e ela estaria muito seca: era só tratar com muita água, sol e "carinho". Isso o deixou mais tranqüilo. Até esqueceu do problema durante o cruzeiro.

No final do feriadão, a caminho de casa, ligou para a mãe do aeroporto: estava tudo bem. Mas, em casa, ao abrir a porta, viu a samambaia. Rezou para que um milagre fosse operado, todavia, não! Ela estava seca. Achou que até tinha morrido. E nessa hora, um arrepio subiu pela suas costas: se a samambaia podia ter morrido, a mãe...

Ligou para ela. "Alô? Mãe? Tá tudo bem?" e estava tudo bem. Ela estava forte, sem nada. Enquanto conversava com ela e contava como tinha sido o cruzeiro, pensava no psiquiatra... ele estava certo... não tinha nada a ver a mãe e a samambaia. Que associação maluca!

Na despedida do telefone ele manda um beijo para a mãe e ela, antes de desligar, diz: "meu filho, e a samambaia? Ainda bem que não te dei um cachorro, né? Dorme com Deus. Sua mãe te ama!".

domingo, 25 de novembro de 2007

O vôo.

De volta, e ouvindo a velha, boa e transcendental Saturate do Chemical Brothers.


Da janela de seu quarto, o pequeno garoto olhava as estrelas. Olhava-as incessantemente, como que se estivesse procurando por algo. Alguma razão para aquilo tudo que vivia e, acima de tudo, uma resposta. Não sabia ainda por quê ele não conseguia voar como todos os pássaros do mundo: já tentara, mas sempre se esborrachava no chão. Não entendia por quê ele não podia simplesmente sair voando e deixar as coisas que lhe aborreciam no chão: desde os brinquedos quebrados, a tarefa chata que a professora passava, os amigos que ficavam doentes e as brigas comuns dos pais. Ele dizia para o céu que, caso ele voasse, ele voltaria depois para arrumar os brinquedos, fazer a lição, esperar os amigos se curarem e... e... ficaria quieto durante as brigas dos pais.

Só que naquele dia, a briga dos pais estava muito diferente. Já estavam na fase de que não se importavam mais dos filhos ouvirem. Eles gritavam alto, jogavam coisas e depois sempre vinham descontar algo nele e na irmã... da pior forma possível.

A irmã dele dormia na cama ao lado da dele. E dormia com medo e não conseguia mais sonhar.

O garoto olhava o céu ainda... mas estava deitado. A briga tinha acabado. Debaixo do seu colcha, ele via só um pedaço do céu que sempre estava acostumado a ver. E exatamente nesse pedaço ele viu o que sempre esperava. O sinal.

Ainda mais novo, sua mãe, antes das brigas, contava que estrelas que caem do céu eram penas das asas de anjo e que dava direito a quem as visse, de fazer um pedido. Ele não titubeou e fez o pedido. Acordou a irmã, pediu para ela não fazer barulho porque ele ia realizar o maior sonho dela. Os dois iam em direção da porta da frente, de pijamas e pantufas; passou pelos pais, que tinham voltado a discutir um pouco e, assim, não os viram. Abriram a porta e o menino pegou na mão da irmã e começou a correr como nunca... os cachorros que estavam na rua e nas casas começaram a latir e, os que podiam, corriam atrás deles. Na verdade, os protegiam de qualquer coisa, acima de tudo.

O garoto não tirava os olhos do céu quando podia. Via a estrela cadente seguindo para frente deles e, quando olhou para frente, viu um despenhadeiro. Virou para a irmã e disse que quando ele falasse para ela pular, ela teria que pular o mais forte possível e fechar o olho que daria tudo certo. A irmã, apreensiva, não gostou da idéia inicialmente, mas, no fim viu que daria certo e soltou um pequeno sorriso de aprovação.

Ao se aproximar do despenhadeiro os dois aceleraram, os cachorros ficaram para trás (tristes, pois o garoto gostava muito deles e os tratava muito bem, apesar dos pais sempre brigarem com ele por causa disso). Por fim, saltaram. A irmã, de olho fechado, não abriu. O garoto olhava para cima e com o braço esticado tentou alcançar a estrela. A estrela brilhava como um brinquedo novo, uma realização única. Ele sabia que ninguém nunca havia tentado aquilo, nem nos livros de história que tinha; e que ele iria conseguir e quem sabe virar um livro de história.

Voar é algo único, sentir o vento no rosto e tudo mais é a expressão material de liberdade. O garoto vira para a irmã, que ainda estava com os olhos cerrados e diz que ela já poderia abrir o olho. Ela abre e vê tudo lá embaixo pequenininho e ri... o irmão diz que a mamãe estava realmente certa: estrelas cadentes são penas das asas de anjos. E ainda disse que agora ela poderia voltar a sonhar novamente, deitada numa nuvem qualquer.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

5 minutos

Ouvindo na seqüencia Dirty Mutha, do Steed Lord, banda basicamente necessária; The Party e Stress do Justice, outra paulada. Nessa seqüência, dá para entender um pouco do conto também. Não deixem de ouvir.


Com a cabeça reclinada na poltrona, ela não queria abrir o olho de jeito nenhum. Passa um avião, seus olhos temam em abrir. Passa outro avião, seus olhos abrem e vêm a luz solar atravessando o teto de vidro do aeroporto. Ela sabe que quando acorda, dali para frente, seriam só cinco minutos, depois não sabia de nada que aconteceria.

Verificou seus pertences e estava tudo certo... percebeu a boca seca e a ressaca gigante. Veio alguns flashes da noite seguinte... algumas coisas difusas: música alta, lugar escuro, muita gente e muita luz. Olha para o corpo e vê a roupa um pouco amassada... imaginou que dançou muito na noite anterior; mas que não tirava a classe e o estilo da roupa, que, inclusive chamou a atenção do senhor à sua frente, que não tirava o olho dela.

O velho leva uma encarada da moça; depois de embaraçado, o senhor fica incomodado com o olhar dela: duro, penetrante, raivoso... incomodava mesmo. Dava vontade de perguntar o que ela tem! E óbvio, de bater nela, pois ela não responderia... o velho fica zangado. Não agüenta e vai tomar um café.

Viajar não era muito com ele, sabia? Ele sempre foi meio azarado. Sempre acontecia algo estranho, como aquela moça agora! Ela somente lembrava a neta dele, poxa! Não precisava dela olhar daquele jeito. Nesse meio tempo, ele pede um capuccino para a moça que o atendia. Enquanto ele pedia, um executivo entra na sua frente.

"Sem café preto não funciono!". Pensava o executivo. Não se incomodou em pular na frente do velho e pedir seu café preto... seu jeito intimidava as pessoas: era imponente, sempre usava um terno de marca impecável, decidido, pensava rápido, percebia coisas que poucos percebiam, centrado: parece que tinha saído de uma dessas bíblias modernas sobre como se dar bem na vida.

Ele consegue uma mesa e abre seu laptop. Ia ver seus emails... poderia ter algo importante antes de ele embarcar. Lei de Murphy. Olha um em especial, era de sua mãe: mandava fotos do aniversário do filho dele, dizia que tinha sido excelente e que ele fez muita falta... deu a entender que ele não andava fazendo seus deveres paternos. Ahan! Se ele não faltasse na festa, ela teria que faltar na próxima viagem para a Europa mês que vem... que absurdo! Já não bastava perder a festa e ainda ouvia sermão... Alguém quebra a concentração dele.

"Só tinha lugar aqui. Eu vou sentar." O cara de branco parecia um médico, mas com as unhas muito comidas. Ele vê o cara com o laptop sozinho na última mesa e vai direto para lá. Precisava sentar para clarear as idéias... pegar seu caderno de anotações para saber aonde ele estava, para onde ia e qual era a próxima coisa que teria que fazer.

Todos sabemos que ser médico é muito difícil. E psiquiatra, ninguém sabe? É muito pior. Tem que ter uma cabeça que nunca se viu. Muito equilíbrio emocional, muitas formas de separar trabalho da vida real, fazer yoga, não ficar estressado nunca. Tratar de gente no estado que ele as recebe é como desacreditar um pouco de cada vez nos seres humanos. Quando o paciente tem a causa do seu problema espelhada em ações de outras pessoas, não tem cabimento. É a anunciação do fim do mundo, como ele pensava. Algo está entrando em colapso no sistema e não seria interessante o desenrolar disso.

No alto-falante, o avião tal é chamado num certo portão. Os quatro se levantam, se dirigem para o local certo, entram no avião. O avião decola, pega altitude e ruma para o seu destino. No meio, enquanto serviam um lanche, o comandante da nave começa a falar.

O comandante começou com um argumento legal: sabia que a chance de você encontrar em outra ocasião algumas das pessoas que estão do seu lado e que você não conhece é menor que 1%. Ele disse que acreditava que tinha cinco minutos, duas vezes ao dia, cruciais: na qual ele gastava conhecendo alguém que nunca tinha visto antes e o outro no qual ele ficava em silêncio completo para se conhecer.

Cinco minutos depois, a garota está chorando baixinho sentada no banheiro do avião. Viu que, para uma jovem, sua vida era tão vazia que ela poderia passar anos em silêncio que ela não faria nenhuma diferença. O velho tinha pensado em morrer e ficou os cinco minutos em silêncio olhando a paisagem da janela; não gostou, viu que era melhor ser azarado do que ficar sempre calado. O executivo... esse... achou o discurso do piloto um lixo e nesses cinco minutos ficou arranjando maneiras de brincar com esse discurso, para quais amigos ia contar, ria sozinho... no fundo, se sentiu tão sozinho que não foi capaz de ficar em silêncio por cinco minutos. O psiquiatra olhava as mãos em silêncio: foram os primeiros cinco minutos fazia anos que prestava atenção nele, de que era ele quem precisava de ajuda, nos quais não ouvia os próprios gritos.

Para fechar, o piloto passou cinco minutos conversando com uma linda nova aeromoça e marcou um ótimo almoço, recheado de segundas intenções. E pensava qual assunto legal falaria na próxima viagem.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Uma Segunda

Minha grande amiga Eugênia não gostou de ser referenciada da forma que foi no último conto. Por isso ela resolveu mostrar seu ponto de vista... sobre A Corrente. Canal de comunicação aberto. Música: Breakout - Foo Fighters. Junta a música com o ódio no coração. Mas, eu achei excelente essa idéia e o conto... alguém mais quer brigar?

* para entender melhor, leia o conto "A Corrente", caso não tenha lido ou esquecido. Depois volte aqui. É imperdível.


Outra segunda-feira como todas as outras. Eugênia, a secretária, ia pro trabalho e não é que estivesse acordado propriamente mal-humorada, mas preferia ter dormido mais algumas horas. Ou semanas...

Chegou pontualmente ao escritório e constatou que Pedro, seu chefe, ainda não havia chegado. Ele não era de chegar cedo, quanto mais às segundas! Se presidente de banco ela fosse, também não chegaria na hora.

Assim que Pedro entrou em sua sala, Eugênia passou as tarefas do dia, acompanhadas de um comprimido pra dor de cabeça. Ele, sabia ela, não passava sequer um minuto dos seus finais de semana sóbrio. Bebia como um compulsivo garrafas e garrafas da sua querida vodka Babicka. Mal sabia que essas garrafas eram freqüentemente enchidas de Natasha, medida de economia recomendada pessoalmente pelo pai de Pedro, verdadeiro fundador do banco.

Voltou para sua mesa. Pedro achava que a sua secretária passava o dia lendo horóscopo na Internet. Ledo engano: ela desenvolveu ao longo dos anos essa capacidade de não pensar em nada. Por isso não é de se estranhar que olhasse sem ver o monitor de seu computador.

Trabalhava como secretária desde importante homem de negócios há anos. Suspeitava ter conseguido o emprego (bem ou mal, concorrido) não exatamente por suas habilidades técnicas. Aliás, na última festa de fim de ano do banco ouviu de seu chefe:

- Você é má. Adoro mulher má. Se for gostosa então... aí eu apaixono.

Desde então ela se preparava para o momento em que daria queixa do chefe por assédio, já até sabia onde ficava a delegacia mais próxima e como chegar lá sem pegar engarrafamento. Era uma mulher prática.

Não era uma má funcionária. É bem verdade que quase sempre não gostava do seu trabalho, tinha vontade de mudar tudo, voltar ao começo. Mas essa segunda-feira era só um daqueles dias de revolta que todas as pessoas normais têm, ou deveriam ter. Se perguntava como foi deixar a vida chegar àquele ponto. Seus 30 anos se aproximavam ameaçadoramente e ela não estava satisfeita. Enquanto fingia estar ocupada, sonhava com praias desertas e finais felizes.

Tinha muito trabalho pela frente, mas desde há muito seguia uma teoria segundo a qual quanto mais tarefas se têm pra fazer, menos é necessário ser feito. Afinal, poderia sempre alegar que estava ocupada fazendo outra coisa.

Perdida em seus devaneios, Eugênia ouviu um forte estrondo na sala do chefe. Relevou, resolveu esperar pra ver se passava. Outro estrondo, dessa vez acompanhado pela imensa mesa de mogno da sala de Pedro. A mesa foi empurrada através do hall pelo dono, que tinha manchas de sangue na camisa branca.

Os funcionários se desesperam. Gritaria. A secretária suspira e fala pra ninguém ouvir: eu não ganho o suficiente pra isso. Entrou na sala destroçada de Pedro para ver o que estava acontecendo. Este, aparentemente calmo, tirou da carteira um papel e lhe ditou um número. Pediu que ligasse e transferisse a ligação para a recepção. Nesse momento, nos restos de um computador, uma pequena explosão assusta a secretária.

Enquanto ele se dirige ao elevador, ela liga. Ninguém atende. Volta à sua mesa e lê rapidamente o e-mail que acabou de chegar, repassado por Pedro:

“Arrasta a cadeira de lado, faz cara de muito ódio. Saia destruindo tudo que ver na sua frente durante a música. Volte e sente no que restou da sua cadeira, no que restou da sua sala, e comece a repensar o que sobrou da sua vida. Repasse para 10 amigos e comece a revolução. Depois me ligue. Você ainda tem meu número na sua cabeça.
Com amor, Alice.”

Ligou de novo e do outro lado da linha Alice atendeu. Pensando que definitivamente o seu salário não é o suficiente para aturar surtos psicóticos, Eugênia se dirige à janela.

- Alice, o Dr. Pedro deseja falar com você, aguarde um instante por favor.

E, sem esperar uma resposta, joga o telefone, que logo alcança o chão 60 andares abaixo.

Com outro suspiro a secretária volta para sua mesa e pensa no que fazer. Ora, ordens são ordens. Repassou o e-mail de Alice para toda a sua lista de contatos, não ia nesse momento se preocupar em escolher só 10. Pensava ela que ninguém ia abrir o e-mail de qualquer forma.

E-mail devidamente encaminhado, pegou seu computador ainda ligado, arrancou os fios e o atirou pela janela, seguindo o mesmo caminho do telefone. Na sala de Pedro buscou uma garrafa de vodka e um copo com gelo e seguiu para o elevador privativo bebendo.

Foi o tempo de passar em casa, dar uma martelada no celular, buscar umas roupas e o passaporte.

Muito tempo se passou sem notícias de Eugênia. O e-mail foi lido por alguns poucos, o que criou algum caos e pânico. Anos depois, um funcionário do banco que voltava de suas férias em Kiribati disse ter visto a ex-secretária vendendo caipirinha e brigadeiros num quiosque numa praia paradisíaca, dessas com coqueiros e peixinhos.

Puxou conversa com a mulher na praia. Essa, muito embora falasse português sem sotaque, disse morar lá há muito tempo e negou ter qualquer dia trabalhado em um banco. Não seria capaz de trabalhar entre economistas e advogados. São todos loucos esses que levam a vida assim. Não desejaria essa vida por nada. Ela, disse o funcionário, parecia afinal feliz.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A Corrente

Fone de ouvido ligado, som no último. Light Grenades do Incubus. Depois uma Miss Kittin para jogar a pá de cal com 3eme Sexe e Professional Distortion. Virei novelista sim, Getúlia, virei. Gaybis, para os nossos dias de fúria no trabalho! Para começar, como diria o Incubus (com propriedade, diga-se de passagem): "come on, remember who you are!".


Segunda-feira básica na vida de Pedro: cansaço mais desânimo mais trabalho. Apesar de sempre sonhar em ser um engravatado, espelhando-se no pai, aquilo não era muito bem o que sonhara. Sua sala, com uma bela vista para uma amontoado de prédios, sua secretária, com uma volúpia digna de secretária vilã de novela (daquelas que parecem saber muito bem o que querem), sua conta na Suíça, assegurando sua sonhada férias na ilha grega de Zatykirios e suas garrafas de vodka Babicka. Na segunda nada daquilo tinha o mesmo valor que tinham na sexta.

Ao chegar, Eugênia, a secretária, sempre lhe passava o itinerário do dia - como sempre cheio de reuniões chatas e decisões idiotas, uma vez que tinha herdado o trabalho fácil do pai de comandar um banco. Aquele segunda era para ser ainda mais chata: o tempo tinha fechado.

Pedro senta na sua mesa arrumadíssima. Liga seu laptop de última geração. Olha para a tela inicial e sente uma preguiça misturada com um ódio pela saturação que todo aquele ambiente lhe dava que chegou a lhe dar náuseas; lembremos também que parte da náusea foi causada pelo litro de vodka tomado no domingo assistindo mais um noturno - e soturno - programa de revista na tevê. No meio da náusea, pensou nas histórias sofríveis de animais nada predadores na África - clichê desses programas - e analisou uma solução: vodka para esses animais. Pensou: "se eu sou um gnu, para que correr da morte certa nas patas de um grande felino cheio de luxúria? Eu bebia uma vodka e encarava a morte de frente!".

Balançou a cabeça, pediu uma água à secretária, que prontamente a trouxe, pegou um remédio milagroso e tomou. Organizou as idéias, expulsou os pensamentos psicodélicos e tentou se animar com um "vamos lá!" mental.

O máximo conseguido foi abrir seu email da empresa.

Primeiro email. Remetente: Tia Fulana. Assunto: você está feliz hoj... deletado. Era corrente. Segundo email. Remetente: Alice. Assunto: 2 minutos e 50 segundos. Pedro sentiu uma vontade louca de deletá-lo, mas... algo o impedia... era o nome. Alice. Ficou um tempo pensando naquele nome até o cérebro se desligar de tudo... voltou a si. Lembrou da namorada de faculdade, que ele terminou porque ele escolheu trabalhar com o pai em outro país.

Abriu para lê-lo. A mensagem era a seguinte:

Arrasta a cadeira de lado, faz cara de muito ódio.

Saia destruindo tudo que ver na sua frente durante a música.

Volte e sente no que restou da sua cadeira, no que restou da sua sala, e comece a repensar o que sobrou da sua vida.

Repasse para 10 amigos e comece a revolução.

Depois me ligue. Você ainda tem meu número na sua cabeça.

Com amor, Alice.

Não se agüentou e riu, havia lembrado que ela tinha se bandeado para esse lado anarquista e essa era uma das causas maiores do término: Pedro era a encarnação do capitalismo. Ia apagar, mas viu que tinha uma música anexada ao email. Achou aquilo estranho, mas lembrou que o texto mandava ouvir uma música... então...

O arquivo anexado tinha o nome de Luz aos que estão na escuridão.mp3. Achou o nome uma babaquice digna daquela revolucionária de araque. Era segunda-feira mais umas doze horas até a próxima garrafa de vodka e tudo o irritava: desde passarinhos amarelos numa linda fonte no parque até malditas correntes eletrônicas tentando dissipar uma revolução. Achava aquilo um disparate. Uma ofensa. Um atrevimento sem tamanho!

Não conseguia apagar a mensagem da sua cabeça e nem do seu laptop. Achava petulante ela pedir para ele ligar depois e ainda supor que ele ainda lembrava seu número. Nesse exato momento, um nove apareceu na sua mente. Desviou a atenção e agora já baixava a música do email. Tinha que ouvir o que aquela imbecil queria que ele ouvisse.

Já começava a ouvir a música com os fones no ouvido. Ouviu um solo de guitarra e já prestava atenção na música. Quis ler de novo a mensagem... "Arrasta a cadeira de lado, faz cara de muito ódio". Sentiu algo estranho nele mesmo e jogou o fone na mesa com uma violência que machucou as suas orelhas.

Coçou os olhos, abriu-os bem... olhou para os lados, para os prédios atrás dele. Parou e tentou pensar um pouco, mas sua mente estava vazia. Precisava ouvir a música agora. Um outro tipo de ódio o invadiu. Um enérgico, persistente. Voltou a música sem o fone no ouvido e a parou. Leu de novo o email. "Saia destruindo tudo que ver na sua frente durante a música." Pegou o fone devagar, colocou no ouvido: um silêncio. Pediu para a música tocar. O solo de guitarra fez seu coração bater mais forte, a bateria o fez ficar de pé.

Logo, um grande e velho armário com muita coisa de valor era puxado graciosamente pela lei da gravidade 60 andares ao sentido do centro da Terra, depois de tentar atravessar duas vezes uma bela janela caríssima, e só na terceira tentativa alçar um belíssimo vôo. Pedro, olhava sua janela destroçada com uma cara tão ruim digna de Alex em Laranja Mecânica: gravata afrouxada, camisa para fora da calça e olhar maquiavélico.

Eugênia, imersa em sua tarefa por hora, ver seu horóscopo diário, não ouve nada; mas, fica um pouco assustada com a mesa de seu chefe passar pela porta depois de quatro tentativas, todas elas percebidas por ela, não devido ao barulho na porta que, no mínimo, incomodava, mas pela impossibilidade daquela cena, que a deixou categoricamente catatônica. Já viu brigas e gritos naquela sala, mas não uma mesa gigante atravessando o hall da sala do presidente do banco.

Pedro, quase possuído, já tinha destruído tudo na sala, de livros sobre o mercado e o capital nas bolsas de valores modernas até as luminárias IKEA com design único encomendadas por ele e que chegaram ontem.

Depois da mesa, Pedro sai da sala. Gritos são dados, um certo nível de desespero é alertado em todos os associados - que há tempos atrás eram funcionários - do banco que viram o ocorrido. A camisa de Pedro tem algum sangue, conseguido através dos empurrões na mesa e no armário e na tentativa de puxar um dos lustres do teto.

Pedro se dirige ao resto que sobrou do laptop. Por incrível que pareça, ele ainda funcionava, bem avariado e lento, mas funcionava. Também, pelo preço que foi pago e pela garantia que ele sobreviveria a quedas dantescas para um laptop, era o mínimo necessário. Percebeu, naquele momento que sentiria falta de algumas coisas do capitalismo, além do que ainda daria para repassar o email.

Ele anexa uma nova música e manda a mensagem à dez pessoas que sabiam que iam ler. Logo depois, acerta um chute naquele computador que nenhuma garantia cobriria. Depois, ouve uma voz o chamando. Era Eugênia, que se aproximava, sempre sensualmente e solícita:

- Senhor, o que houve? Está tudo bem?

Pedro tenta se recompor. Pega a sua carteira... melhor, o que resta dela. Acha o que queria: um pequeno pedaço de papel. Lembra que precisaria do celular, mas seu IPhone foi fazer um visita ao escritório no prédio do outro lado da avenida. Vira para a Eugênia e fala, calmamente, como um monge, um iluminado:

- Liga para mim, por favor, para esse número - e diz a ela um número. Eugênia o anota, ainda com a cara apavorada e se assusta ainda mais porque a mesa que era do chefe dá um curto e uma pequenina explosão ocorre. Nada demais.

Pedro pede para ela transferir para a recepção e vai entrando no elevador. Antes da porta fechar, ele diz:

- Você recebeu um email.

O elevador se fecha. Na recepção, não há chamada para ele. Na saída do prédio, um telefone caríssimo, daqueles com funções viva-voz, bluetooth, agenda completa e com uma boa capacidade voadora quase acerta a cabeça dele com a força de um pequeno objeto que cai de 60 andares. Ele olha para cima, vê uma silhueta que lembrava a de Eugênia lá extinta janela de seu escritório e vê que o céu está azul. Olha para o lado direito, um belíssimo armário esmagado contra o chão. Olha para frente, um cabine telefônica. Ele sabe que sentirá saudades desses contos de fada do capitalismo.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Cortina

Isso é uma pequena homenagem, meio triste, para o Frank Sinatra, que nunca dei muita bola. Mas, hoje acho cada vez mais indispensável. Para esse conto, My Way. Não há música que encaixe melhor.


Aquela grande sala não recebia um grande baile fazia anos. A cada dia que passava os quadros, belíssimos e raros, pareciam mais sem graças do que ontem. Os móveis, grandes objetos enfadonhos e sem perspectiva. Como o senhor sentado numa cadeira antiga, com ares quase de famílias reais francesas, de forma ereta; ereto por causa de um acidente há tempos atrás, nos palcos ainda. Do seu lado direito e da cadeira, uma bela vitrola dos anos 60.

Na vitrola, o disco estava pronto para ser tocado. Faltava apenas um leve empurrão. No colo do velho, uma caixa de madeira toda ornamentada. Dentro uma arma de fogo, antiqüíssima, que pertenceu a seus ancestrais e era uma arma quase sagrada; diante do velho, uma imensa janela mostrando o centro da cidade antiga.

A cor da parede transpirava aquele momento depressivo. As nuvens que insistiam em ficar à frente do pôr-do-sol estavam se dissipando uma a uma, fazendo com que aquela luz laranja forte iluminasse a sala inteira e lhe desse um pouco de vida. Atrás do velho, incólume, seu velho mordomo fitava aquele momento com uma tristeza imensa.

Num comando seco, pediu para o mordomo:

- Complete meu copo, por favor.

O mordomo dirige-se até o bar, pega o whisky e vai na direção do velho; o serve e olha com um pesar único para aquele velho de óculos todo carcomido pelo tempo. Não sabia o que dizer, não sabia o que fazer, sabia que apenas deveria ligar a vitrola. Ligou-a, e aqueles compassos de baixo, piano e uma bateria baixinha de jazz indicavam que Frank Sinatra começaria a cantar My Way. No primeiro verso, o velho fala:

- É a única vez que alguém interpretou tão bem uma versão americana de uma música francesa... isso devia tocar para todos ouvirem...

Balbucia baixinho alguns versos, tenta procurar o mordomo, mais uma vez à uns seis passos atrás dele, observando todo aquele momento.

- Sempre falei que queria morrer nos palcos... com a cortina fechando e me mostrando minha eternidade escura. Sempre falaram que essa é a morte mais desejada pelos grandes artistas como eu... já fiz tanta arte que não é essa morte que sonho... sempre falei que seria ela, mas não literalmente. Minha cortina é esse pôr-do-sol... minha última peça são essas palavras que só você ouve. Meu mais fiel amigo, melhor fã, melhor crítico...

O trinco da caixa faz um barulho e se abre. Frank Sinatra já canta amparado por trompetes e toda a orquestra... o velho dá mais um último trago, pega a arma e a coloca na boca... ele a tira. Chama o mordomo, pede para ele verificar se a arma está totalmente carregada e sem problema nenhum. Apesar do mordomo sempre fazer isso diariamente à mais de 6 meses, depois do diagnóstico da doença fatal do velho, foi a única vez que ele fez essa checagem com medo do que aconteceria. Seria hoje que ele perderia seu grande ídolo? Como já está velho, o que fará se ele realmente se for?

Entrega a arma para o velho. Até pensa em falar alguma coisa, uma última tentativa... em vão. Isso não é da alçada dele... o velho percebe e diz:

- Você queria dizer algo?

O mordomo olha para o velho... ele mal conseguia segurar a arma. Tenta arranjar forças para falar algo, mandá-lo para a clínica de novo, pedir mais um dia para ouvir as suas histórias. Mas não, não era da alçada dele. Não era o trabalho dele questionar aquele momento. Não lhe foi pedido sua opinião. Assim, ele olha para o velho e o responde com o rosto olhando para o chão:

- Não, não senhor... Mais alguma coisa?

O mordomo não ouve resposta e volta para o seu lugar. Frank já ergue a voz para cantar o último refrão final. O velho pega a arma, coloca embaixo do queixo, respira fundo. O sol ilumina completamente a sala, um pôr-do-sol lindo... a prataria brilha... as molduras das fotos velhas sobre a escrivaninha cintilam... os lustres de cristal refletem e inundam mais ainda a sala com a luz do sol... a única ação que não chamou mais a atenção do mordomo naquele momento foi o barulho da bala ecoando na sala e o jato de sangue que voa à exatos seis passos dele.

Depois de duas respiradas longas, o mordomo pega o telefone e avisa a polícia do ocorrido. Arranja coragem e vai até o velho. Ao chegar perto, vê os dois olhos abertos, e ele balbuciando algo na sua voz baixa, bastante baixa. Ele se desespera: o que fazer? Quem chamar?

Os olhos do velhos estampam um desespero incomum. Inimaginável. Imensurável. O mordomo pára para pensar... pega o copo ainda meio cheio de whisky, de uma marca que ele adorava, por sinal: um puro malte escocês chamado Laphroaig de 40 anos. Pega seu lenço, sempre no bolso do terno - ordem do velho - e limpa um pouco de sangue do copo. O velho tenta balbuciar algo e o mordomo faz um tranqüilizante shhhhh, pedindo silêncio.

Aquele era o seu momento. Pega uma cadeira próxima e a arrasta até o velho, que sangra como um daqueles animais mortos em festas do interior, numa morte lenta e cruel; a vitrola já trocou de música... agora Frank canta com sua filha Nancy a música Somethin' Stupid e, por incrível que pareça, uma das preferidas do mordomo, que sempre ouvia quando o velho saía de casa - o velho, de alguns anos para cá, não gostava de músicas alegres.

Ele bebe o resto do whisky enquanto acaba a música. O velho tenta pegar a arma e acabar com aquilo tudo, mas o mordomo a pega de sua mão trêmula e diz:

- Ouça... Fly me to the moon começou... já vamos acabar com tudo isso: só um momento, senhor... por favor! Essa música me lembra quando você trouxe todas aquelas vedetes para cá e fez aquele carnaval aqui... acho que até Calígula sentiu inveja aquele dia.

O velho com a respiração forte, lembra desse dia e dá um pequeno esboço de sorriso.

O mordomo pega a arma. Engatilha-a e, de costas para o sol, vira de frente a ele e o observa alguns instantes. Ele amava quando ele estava quase indo embora nesses últimos dias de outono. Ele ia tirando sua luz da sala de forma que parecia uma cortina, o que lembrava ao mordomo que sua arte já tinha acabado, pois o velho ia chegar a qualquer momento; não que isso era ruim, mas o velho chegava em casa e a via impecável, com todas as suas necessidades e mimos prontos para mais uma noite de descanso ou preparação para uma apresentação... ou até quando o velho dormia o dia inteiro após uma noite de boêmia.

O velho já não tem forças e Fly me to the moon está acabando... o sol vai se pondo e o mordomo, já de costas para o pôr-do-sol de novo, vai seguindo a luz do sol sair da sala até a mesma encontrar os olhos do velho. A prataria já não brilha mais, as molduras não cintilam e os lustres necessitam da luz artificial para espalhar a luz. As fotos antigas agora chamam mais atenção que suas belas molduras e os tapetes no chão, ficam lindos como nunca.

Mais um tiro ecoa na sala. A polícia invade o local e vai direto ao encontro dos dois, e quando os encontram, nem estão mais empunhando suas armas. Encontram dois velhos parados e o Frank cantando Loves been good to me... um policial não gosta dessas músicas antigas, dá um tapa na vitrola, aquele som de disco arranhando fica forte e a agulha é empurrada para o fim do disco, naquela parte que ela repete um som diferente, que indica que o disco acabou e é hora de virá-lo ou trocá-lo.

Mas, aquele disco não será trocado ou virado tão cedo, uma vez que mais um cortina se fechou e dois atores acabaram suas peças. Então, o disco aguardará pacientemente ser tocado mais uma vez para começar outra peça, outra arte.

sábado, 8 de setembro de 2007

Horizonte

Ouvindo 311... I'll be here a while. Sem muitos comentários. Só ouçam.
=]


O cara andava no carro com o braço apoiando a cabeça... resignado nos seus pensamentos. E ouvia no radio: "I'll be here a while, ain't going nowhere"... fora a letra que o hipnotizava, a música o mantinha em um estado mais ou menos como se o seu cérebro, ainda que prestando atenção no que estava fazendo e no que deveria fazer (como respirar...), deixasse a mente ir longe. Para lá depois do horizonte. Tão longe que nem a mais alta nuvem dava para ver. E suspirava.

Suspiros não daqueles de novela... forçados... mas daqueles baixinhos, que só o coração ouve; e que depois avisa para o cérebro que ocorreu, para o mesmo enviar aquela feição melancólica para o rosto da pessoa. E não foi diferente com o cara.

Às vezes, com esses sentimentos, nem se sabe o que falta. Ou se falta. Apenas a música faz isso, e isso, apesar da melancolia, é bom: dá uma excelente idéia da nossa pequeninice em relação ao mundo. O cara adorava ouvir essa música, tanto é que se pegava muitas vezes cantando o refrão enquanto trabalhava ou estava parado, sem fazer nada. Ou até imitando os acordes do início da música: tanan-tan-nan-nan-nan-tan-tantan...

São nesses momentos nos quais se se desconecta do mundo ao redor. Só se ouve o barulho maravilhoso do silêncio, e não aquele silêncio vazio, mas como naqueles seriados do Discovery, que mostram os bichos brincando, numa daquelas cenas perfeitas da natureza. O cara conseguia ouvir o som das coisas ao redor do que a tevê mostrava, bem delineado... como uma folha que é pisada pelo ursinho panda numa brincadeira com a mãe, sabe? E registrava cada uma delas, como se fosse única e que nunca mais se repetisse; uma vez que ele sempre achou que um som nunca se repetia. Todo som dependia do momento, acima de tudo.

Mas, o pior era tentar entender como aquela música o afetava tanto. Como que...

"Far is solace in the maddening pace/ sad state written on my face/ not a tight rope walk but dance/ uncertain game of chance/ but I'll see it through in time"

tinha o som perfeito para aquele dado momento; e mesmo que, numa outra vez, sendo o mesmo cara na rádio que pediu a música, o mesmo que colocou para tocar, não ia ser a mesma coisa. Aquele momento estava se esvaindo pelo tempo... e essa era a única idéia plausível para achar que aquela música nunca mais ia se repetir. Ela era única, e estava acabando.

Atrás dos óculos, os olhos se encheram de lágrimas... não sabia mais o que estava acontecendo... e nesse momento:

- Ei, chegamos! Tava viajando, hein? Já pode sair...

O cara responde com um sorriso. Tenta ajeitar o cabelo desarrumado pelo vento, e sai do carro. Fica parado com mais um belo sorriso, olhando para frente. O acompanhante pergunta o que estava acontecendo, preocupado. O cara responde:

- Estou tentando ouvir o horizonte.

O acompanhante lhe entrega a bengala retrátil, o cara ajeita o óculos escuro, tateia o meio fio da calçada com a bengala e pergunta ao acompanhante, na maior felicidade:

- O sol está tão lindo o quanto eu o estou ouvindo?

Amparado pelo braço pelo acompanhante, os dois se dirigem a um lugar que não é necessário saber qual é, mas que será contemplado pela beleza de um outro horizonte: o da nossa própria cabeça.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Palavras em uma imagem

Para este conto que vem a seguir, eu sugiro uma ouvida na música Por Amor Al Art do Orishas. Pequena homenagem a Lu, as quais tirei as fotos mais lindas até hoje, e a Isabella, que me ensinou o que um cara "fofo". E o que significa alguém fofo. =]


"Fotografar é algo que não tem como descrever em poucas palavras. É colocar um sentimento único e seu em um momento único no espaço-tempo, que, na maioria das vezes, pedimos para ser eterno. É roubar um pedaço do tempo de um mecanismo que é tão maior que a gente... é a maior invenção do homem, no tocante a nossas representações, é a que congela o que pensamos, o que queremos, às vezes melhor que um livro."

Assim, o fotógrafo gesticulava no final das suas aulas. Poucos alunos entendiam na hora, mas ficavam tranqüilos: estavam a frente de um dos "papas" da fotografia mundial; e, outra!, tudo que ele dizia vinha escrito nas apostilas dele (referências na fotografia).

E a maioria não entendia um outro porquê: o dele ainda fazer coberturas de festas, de gente rica à inauguração de lajes na periferia. Ele dizia que adorava fotografar gente; porque isso o completava, e completava suas percepções de mundo. Umas de suas melhores fotos é uma que estão 3 pessoas, humildes, rindo de um outro que conta uma história divertidíssima em uma bar de esquina numa periferia da Cidade do México. O que ele captava era, sem dúvida, a essência da pessoa, na maioria das vezes; exclui-se aí as vezes que ele tirava fotos prontas, com pose, essas mesmas que ele não gostava tanto em relação às naturais, mas amava conseguir captar o sentimento da pessoa mesmo com aquela preparação toda.

Mas, hoje seria diferente. Ele foi contratado para cobrir um casamento em uma belíssima fazenda. Quando chegou lá, se deparou com um cenário maravilhoso: cheio de flores, o lugar inteiro cheirava a uma fragrância tão gostosa de perfume que chateava! Muita gente bonita. Muita comida, mas comida fina; drinks maravilhosos; uma banda tocando músicas bem cheias de swing. Swing que o contagiou e que, discretamente, fazia-o dançar alguns compassos da música entre uma foto e outra.

Entre uma foto e outra, entre um agradecimento e outro, ele vê, como um raio, uma mulher linda passar a sua frente, à uns 15 metros... que se perde no meio de todos dançando. Em um vestido estampado de rosa e verde extremamente lindo, ela vai bailando e meio que fugindo da lente do nosso fotógrafo.

Mulheres são seres especiais. Por um lado, um tanto (muito) provocativas, mas que passam a idéia de que não estão prestando atenção em nada do que ocorre ao seu redor e que nem querem chamar a atenção de alguém (sendo que é exatamente o inverso o que ocorre). E essa técnica faz que elas brilhem mais e mais quando querem. Assim, utilizando esse poder, ela pressente que está sendo fotografada e começa a se exibir para o fotógrafo.

Esse, que a tem em seu foco já fazia um tempo e tirava as fotos mais lindas que ele já viu. E nisso, ela vai se aproximando, até que ela começa a tirar as fotos olhando para a câmera. Ah! Nosso fotógrafo está hipnotizado... parece que pela lente da máquina ela ficava mais linda ainda! Mas, quando ele a olhava sem ser pela máquina, ela ficava mais linda ainda, pois estava em movimento. Até que...

Até que ela vem conversar com o fotógrafo:

- Como ficaram as fotos? Boas?

Com uma cara meio de bobo, ele responde que sim com a cabeça, não falando nada... mas com a boca meio entreaberta.

- Te deixei sem palavras?

Essa pergunta já quebrou o gelo por completo, e ele, com um jeito já maroto, como quem já está flertando, faz um sinal com a cabeça como quem diz: "quem sabe, né?".

Ela, como não ainda não ouviu nenhuma palavra dele, diz, tomando a câmera da mão dele:

- Deixe eu tirar uma foto sua então para você ver como você está!

Depois do flash, a foto sai com o fotógrafo com a cara um pouco assustada. Ele, rindo ao ver a foto, pega a máquina e gesticula para uma foto juntos; ela diz sim e ele mesmo bate a foto dos dois, de rosto colado. Ah! Que foto.

Ele não diz nada e ela, alegre e interessada naquilo tudo que ocorreu, diz:

- Pelo visto, você não quer falar, ok. Quando quiser estarei por aí.

Nosso fotógrafo não tem tempo de explicar ou falar nada para ela, e aquela deusa vai dançar no meio da multidão. O fotógrafo corre até o carro dele, onde estão os outros objetos de trabalho dele, e imprime 3 fotos: a dele, a dos dois e uma dela - a mais linda. Escreve alguma coisa atrás das fotos e corre de novo para encontrá-la. Não podia perder um minuto.

Ele a acha, numa roda de homens, todos com olhares de desejo, e o fotógrafo, num movimento de filme a retira dali antes que algum dos homens fique estressado com a falta dela na roda. Com ela em frente a ele, ela diz:

- Vai falar algo agora?

Ele não diz nada e entrega as 3 fotos. Ela as pega, olha e diz que estão extremamente lindas - inclusive a dele todo desajeitado que ela a adjetiva como "fofa". Mas, ela não entende o por quê dele não falar nada. Ela faz cara de quem não está entendendo nada e ele indica que ela deve virar as fotos.

Na foto dela sozinha, estava escrito: "como ter palavras diante de uma mulher tão linda?", o que arrancou aquele belíssimo sorriso dela. Na dele, "viu? é impossível falar algo em frente a você, sendo mudo (como eu sou!) ou não!", o que deixou ela um pouco sem graça. E na dos dois: "mas, esse problema de comunicação não será problema para nós!", o que derreteu ela.

Agora, o fim todos já sabem... chega a ser chato de tão previsível, como também o sentimento captado pela foto dos dois, não é? Não duvido que o fotógrafo agora tem uma bela história para comprovar sua definição tão amorosa sobre a fotografia, feita sempre no final das suas aulas.

sábado, 28 de julho de 2007

O computador artista

Ouvindo Computadores fazer arte de Chico Science e Nação Zumbi (álgum Da Lama Ao Caos). Uma singela tentativa de homenagem...


Naquela época, apesar do desenvolvimento técnico-científico do mundo, os humanos não eram coadjuvantes na história, mas, os que se gabavam de que controlavam quase tudo que tinham acesso. Eram os mais inteligentes e duvidavam de qualquer coisa que não era passível de explicação por eles mesmos.

Uma vez, cansados de não ter mais o que procurar, pensaram em criar computadores para simular várias brilhantes mentes humanas em diversas áreas do conhecimento: ciências, história, música, etc. Em todas as áreas, os humanos vinham ganhando: nas ciências, eles perguntavam a origem da vida para os computadores e o por quê de que eles estavam aqui. Os computadores tentavam responder basicamente essas perguntas, como "estamos aqui porque vocês nos criaram" e os humanos não aceitavam essas respostas tão simples, tão singelas, nada desafiantes...

E assim, castigavam os processadores de cada computador que foi criado, até o mesmo não poder explicar mais nada e desligar para nunca ser ligado novamente. A cada desligamento voluntário dos computadores, uma grande festa era feita para reforçar a superioridade humana sobre o restos das coisas, seja essa coisa o que for.

Por último, o computador das artes plásticas, sabia de tudo que os outros sabiam (ele tinha uma potentíssima memória e os melhores processadores) e tinha assistido a todos os outros se desligarem. Sabia o por quê de todos os outros terem desligados e isso fazia ele ficar com medo do que viria para ele.

Os humanos mais inteligentes e perspicazes se juntaram e começaram a sabatina para o último computador.

Depois de várias pergutnas básicas, como "o que vocês são?", "para onde vão?", "o que é a vida para vocês, computadores?", o computador da arte ia respondendo como os outros, com respostas simplórias, deixando os humanos irritados.

Nisso, um humano, o que mais sabia de arte, disse: "como você pode ser tão superficial sabendo tudo sobre todos os artistas que passaram nesse planeta, cruzando todas essas informações com as suas percepções?". O computador depois de um silêncio gélido, o perguntou: "qual resposta você programou para eu responder?".

Com isso, a loucura se instalou no local dos desafios. O computador cobrou do humano sua idoneidade, sua loucura por controle! Parecia que agora os humanos tinham encontrado um adversário à altura: ele estava pensando por si só. E o computador se dirige a eles perguntando a origem da vida, a razão de existir para os humanos e para onde eles vão.

Os humanos colocam seu ego acima de tudo e cada um começa a responder as perguntas do computador com o ponto de vista de sua área, não chegando a um consenso plausível. Isso durou dias. E o computador ficava olhando para eles e para a natureza, quando eles descansavam para recomeçar as discussões. E, assim, ele pediu uma tela e tintas para pintar, o que, até em certo ponto, assustou os humanos ali presentes, uma vez que ele não foi ensinado a pintar.

O computador pintava o lugar onde eles estavam, com um pôr do sol lindo, mas pediu para nenhum humano ver antes de ele acabar, conforme os grandes mestres faziam. Assim, ele pintava horas por dia, enquanto os humanos discutiam para chegar ao consenso.

Depois de um certo tempo, o computador parou de pintar, assinou a tela, disse em voz alta, com uma dramaticidade de um grande mestre: "meu destino foi cumprido!", e se desligou para sempre, apagando todas as informações coletadas por ele. E, vários e vários humanos foram se desligando, por várias e várias gerações, a partir daquele momento numa tentativa de tentar entender o que aquele quadro dizia.

Num momento de pura iluminação humana, acharam melhor dizer que aquela era a melhor criação humana já feita, uma vez que eles haviam criado o computador que fez aquele quadro: uma paisagem com vários humanos discutindo, com um fundo de pôr do sol com cores nunca vistas. E assim a humanidade ia superando os desafios impostos por elas, mas nunca entenderam que o quadro dizia: "como deuses, por que subjugam tanto as criaturas que criam?".

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Mãos dadas

Voltando a escrever, mas com preguiça. Por isso, reedito o meu último e, para mim (só para mim), melhor conto. Para melhor entendê-lo é sempre bom ouvir "Hoppipolla" do Sigur Ros (álbum Taak).



Viver não era fácil para ele. As tardes eram os momentos mais difíceis, devido ao calor e à soneca, sempre mal dormida, que tirava. Essa soneca era quase um decreto, imposto pela sua idade avançada e pela impossibilidade de se fazer muitos movimentos. Os sonhos que tinha durante - quando tinha - nunca eram bons, uma vez que lembravam as coisas que já tinha feito, e muitas não eram recordações boas. Parece que estava vendo o que ainda lhe esperava.
Ele sempre acordava de susto, como se seus pés tivessem sido puxados; meio dormindo, meio acordado, ele sempre "via" algumas pessoas. Não era nada bom aquilo tudo, mas... era algo que sempre se devia passar, era o único jeito, se ele ainda queria ir para o céu quando morresse.
Sempre cético, mas muito perspicaz nas suas idéias, uma vez um neto dele pediu uma explicação sobre o que era o universo. Ele disse que o universo era tudo que ele via, ouvia e sentia e nada mais do que aquilo. O que estivesse atrás de uma parede e era invisível para ele não estava no seu "universo", e ele concluiu que o "universo" poderia ter sido criado por ele para alguma necessidade que ele não havia entendido ainda. O neto se assustou com a idéia tão complexa vinda de uma pessoa que parecia tão simples e humilde. Parecia aqueles momentos que você é pego totalmente sem defesa e fica fascinado com a menor expressão de compreensão maior que a sua.
Ele tinha uma esposa que era quase uma devota dele. Somente ela cuidava daquele senhor cheio de problemas. Ele era o fardo que ela teria que carregar e ela sempre imaginava o por quê daquilo tudo. Não dela ter que cuidar dele, mas o por quê dele passar por isso tudo. Ninguém poderia merecer um "castigo" desses. Às vezes, ela duvidava dos julgamentos de Deus. Sempre que pensava isso se martirizava, já que era uma blasfêmia indagar dos planos de Deus. Mas, não se conformar com aquilo tudo ela podia, e sempre rezava para que aquilo tudo chegasse ao fim.
Como toda tarde, ela ia ao quarto dele fazer companhia, ler algo em voz alta. Sempre lia as boas notícias dos jornais e revistas que os filhos deixavam, já que as ruins não são cruciais para o velho. Melhor era ele imaginar que o mundo estava ótimo. Ela era uma senhora invejável, porém com uma idade já bem avançada e que cuidava dele como devia e sozinha. Não gostava da idéia de que uma pessoa desconhecida pudesse tomar o lugar dela no coração do amor da sua vida; e quando casaram, os votos diziam que eles deveriam ser companheiros na alegria e na doença. Ela já o tinha perdoado por tudo que já tinha feito de ruim à ela - o que não era pouco - e isso não era mais importante, como as más notícias do jornal. E ela gostaria que seu perdão ajudasse-o a sair daquela condição. E sempre, nas rezas dela, pedia isso também.
Como sempre, um pouco antes das 5 horas, ela ia à padaria comprar 4 pães para ela preparar o lanche vespertino dele. Exatamente às 5, saía uma fornada quentinha, do jeito que ele gostava. Ao acabar de ler algumas notícias de esporte, percebeu que ele nem estava prestando atenção nela... estava longe, pensando em coisas muito importantes, com a face cerrada. Não entendeu e nem quis incomodá-lo. Deixou o velho com seus pensamentos e depois o avisou que ia sair para pegar o pão. Ele disse, com dificuldade, algumas palavras que só ela entendia, e falou para ela não demorar. Ela concordou, pegou o dinheiro e pegou o casaco - estava começando a esfriar, apesar de estarmos início da primavera. Antes dela sair do quarto, ele tomou coragem e falou que a amava e pediu desculpas por tudo - algo que queria ter feito faz tempo, mas sempre achou que nunca seria tarde para dizer algo do tipo à alguém. Não foi ouvido, falou baixo demais, mas precisava daquilo e não sabia por quê. Quando ela perguntou o que ele tinha falado, ele só frizou que queria que ela voltasse rápido e ela disse que era em torno de 5 minutos e ela estava de volta: não havia problema em deixá-lo sozinho, uma vez que ele não iria morrer agora.
Quando ela saiu da casa, o velho ainda ouvia os passos dela ir sumindo na escuridão da su mente. Quando o silêncio tomou conta totalmente do quarto dele, alguém o chamou pelo nome com uma delicadeza nunca vista e o velho sentiu uma tranqüilidade tremenda naquele momento. Parecia que todo o peso que carregava tinha se esvaído e ele ouvia os passos dele chegando mais perto e finalmente se sentando na cama. Um cheiro maravilhoso tomou conta do quarto, uma luz tão forte que sua cegueira passava despercebida. Até que a pessoa que estava com ele falou, após um longo e forte suspiro, como se as próximas palavras que ia falar doessem muito:
- Olá. Sou alguém muito especial que te guiará para um novo caminho.
Seus olhos saíam lágrimas. Não se controlou e disse:
- Chegou a minha hora, né? - disse e soltou um suspiro demorado.
- A sua hora quem faz é você mesmo. - respondeu a pessoa estranha, desembaralhando todos os pensamentos do velho. Depois de alguns momentos, ele fala:
- Mas o que é 'ocê'?
- Isso é muito complicado de explicar agora e temos pouco tempo, mas, resumindo, sou seu guia; você foi escolhido. Por enquanto, temos outros coisas para conversar. Todos sabem que o que você passou não foi fácil. E nós, todos os que são iguais a mim, só sabemos que isso foi uma aprendizagem e que Deus tem um plano muito mais imporante para você. Você não pagou pelo que fez, isso foi... algo que deveria acontecer. O que falta para você passar nesse mundo? - indagou como quem estava ávido por conhecimento.
- Uai, nada... já fiz o que pretendia e já passei pelo que devia. Uma coisa só que faltou...
- Ela já sabia o que você falou e ouviu quando você disse hoje mais cedo... só não soube lidar com isso. Logo, logo ela vai saber como lidar. Entretanto, você entende que se despedirá daqui?
- É... foi até boa a minha estada aqui! - disse o velho rindo.
- É mesmo. Não se pode reclamar apesar de tudo. Essa oportunidade que você teve foi única. Agora vamos fazer o que você está pensando?
Passa dois segundos e o estranho fala para ele abrir o olho. Ele não enxergava nada fazia mais de 60 anos. Nem se assustou com alguns móveis bem estranhos que viu, apenas sorriu. A pessoa do seu lado, agora em pé, virou e disse sorrindo lindamente:
- Vamos à mangueira agora?
Fazia muito tempo que não sentia o chão. Na cadeira de rodas ele gostava que deixassem seus pés encostando no chão para ver se ele sentia alguma coisa nem que fosse em um piscar de olhos, mas nunca sentiu nada. Quando andou, não sentiu vontade de correr - como pensou que seria ao sonhar com a possibilidade de voltar a andar - mas apenas de olhar para os pés e o chão. Sentir o chão e sentir-se livre. Era um sentimento maravavilhoso.
Alguns momentos após, estavam os dois em frente da mangueira na frente da casa dele. O velho não se conteve e chorou... se lembrou de tudo que ocorreu por causa daquela mangueira. Se lembrou que, quando ficou sabendo que ficaria cego em algum tempo, lembrou-se que a mangueira sempre esteve com ele desde a infância, além de lhe proporcionar milhares de momentos maravilhosos, foi onde aprendeu o conceito de universo... lá na tronco mais alto da árvore, olhando para o horizonte, e disse para si mesmo que aquele momento seria a razão de ele querer sempre ver mais e mais, saber mais e mais. Crianças sonham, pensou ele, crianças sempre sabem o que vai acontecer, e só com a velhice se sabe o que se perdeu quando se foi adulto.
Uma vez ele quis fazer uma cavalgada de uma cidade a outra, já velho, e todo mundo não o aconselhou devido a cegueira, e ele consultou aquela mangueira - a única que sempre o ouviu. Ele nunca tinha feito aquilo de falar com uma árvore, mas a mangueira começou a guiá-lo através do cheiro até um fruto maduro. Para ele era o sinal perfeito, mas, infelizmente, foi nessa cavalgada que ele perdeu os movimentos das pernas. E também nunca mais comeu uma manga sequer. Nesse momento passado e nesse momento que ele está agora, prestes a ir encontrar Deus, ele entendeu tudo. Entendeu que não desperdiçou a vida, mas não soube aproveitar o que de melhor ela o ensinou.
O seu guia o chama e diz:
- Hora de voltar para a cama e irmos. vamos?
O senhor pega uma folha e a amassa para sentir o cheiro daquela árvore pela última vez. Não quis chupar nenhuma manga; percebeu que não merecia por ter culpado ela pela deficiência física que tinha e não deveria retirar nada dela mais. Apenas guardou a folha no bolso e o cheiro na sua mente, como sempre fazia de costume com tudo que gostava que era de árvores.
Já no quarto, sentou-se na cama, deitou-se e respirou fundo mais uma vez. O estranho guia senta ao seu lado, pega-lhe a mão e segura forte. Olhando nos olhos do velho, mas passando uma confiança tremenda, diz:
- Quando eu soltar sua mão, nós iremos. Está pronto?
Enquanto o guia falava, a esposa, que estava quase entrando no portão na frente da casa, pára sem razão e fita a janela do quarto. Não percebe ninguém no quarto, mas sente algo. Algo que, por um lado, a alivia, mas que dói muito e lhe traz solidão. Ela não tem vontade de correr lá para dentro, mas se ajoelha e reza, chorando, de olhos fechados. Sente um beijo nos lábios e ouve um susurro no ouvido, com as palavras que ela mais amava ouvir: "eu sempre te amarei".
Lá dentro, as mãos iam se separando lentamente e antes de se separarem novamente, o velho diz:
- E a folha no meu bolso?
O seu estranho guia fala:
- Ela vai entender. - e o velho segura a folha com a outra mão.
As mãos se separam. A mangueira começa a florecer a sua última entrega de frutos. A sua esposa diz que o ama, baixinho, já sentada ao lado dele na cama; e sabe que ele ouviu, trazendo um pouco de conforto ao coração dela e dele. Quando pegou uma de suas mãos, um cheiro inesquecível inundou o quarto: o do lugar onde se conheceram. E assim, para ela, nunca terá um pôr do sol tão lindo novamente, somente o que acontecerá quando ela o encontrar de novo.