sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Cortina

Isso é uma pequena homenagem, meio triste, para o Frank Sinatra, que nunca dei muita bola. Mas, hoje acho cada vez mais indispensável. Para esse conto, My Way. Não há música que encaixe melhor.


Aquela grande sala não recebia um grande baile fazia anos. A cada dia que passava os quadros, belíssimos e raros, pareciam mais sem graças do que ontem. Os móveis, grandes objetos enfadonhos e sem perspectiva. Como o senhor sentado numa cadeira antiga, com ares quase de famílias reais francesas, de forma ereta; ereto por causa de um acidente há tempos atrás, nos palcos ainda. Do seu lado direito e da cadeira, uma bela vitrola dos anos 60.

Na vitrola, o disco estava pronto para ser tocado. Faltava apenas um leve empurrão. No colo do velho, uma caixa de madeira toda ornamentada. Dentro uma arma de fogo, antiqüíssima, que pertenceu a seus ancestrais e era uma arma quase sagrada; diante do velho, uma imensa janela mostrando o centro da cidade antiga.

A cor da parede transpirava aquele momento depressivo. As nuvens que insistiam em ficar à frente do pôr-do-sol estavam se dissipando uma a uma, fazendo com que aquela luz laranja forte iluminasse a sala inteira e lhe desse um pouco de vida. Atrás do velho, incólume, seu velho mordomo fitava aquele momento com uma tristeza imensa.

Num comando seco, pediu para o mordomo:

- Complete meu copo, por favor.

O mordomo dirige-se até o bar, pega o whisky e vai na direção do velho; o serve e olha com um pesar único para aquele velho de óculos todo carcomido pelo tempo. Não sabia o que dizer, não sabia o que fazer, sabia que apenas deveria ligar a vitrola. Ligou-a, e aqueles compassos de baixo, piano e uma bateria baixinha de jazz indicavam que Frank Sinatra começaria a cantar My Way. No primeiro verso, o velho fala:

- É a única vez que alguém interpretou tão bem uma versão americana de uma música francesa... isso devia tocar para todos ouvirem...

Balbucia baixinho alguns versos, tenta procurar o mordomo, mais uma vez à uns seis passos atrás dele, observando todo aquele momento.

- Sempre falei que queria morrer nos palcos... com a cortina fechando e me mostrando minha eternidade escura. Sempre falaram que essa é a morte mais desejada pelos grandes artistas como eu... já fiz tanta arte que não é essa morte que sonho... sempre falei que seria ela, mas não literalmente. Minha cortina é esse pôr-do-sol... minha última peça são essas palavras que só você ouve. Meu mais fiel amigo, melhor fã, melhor crítico...

O trinco da caixa faz um barulho e se abre. Frank Sinatra já canta amparado por trompetes e toda a orquestra... o velho dá mais um último trago, pega a arma e a coloca na boca... ele a tira. Chama o mordomo, pede para ele verificar se a arma está totalmente carregada e sem problema nenhum. Apesar do mordomo sempre fazer isso diariamente à mais de 6 meses, depois do diagnóstico da doença fatal do velho, foi a única vez que ele fez essa checagem com medo do que aconteceria. Seria hoje que ele perderia seu grande ídolo? Como já está velho, o que fará se ele realmente se for?

Entrega a arma para o velho. Até pensa em falar alguma coisa, uma última tentativa... em vão. Isso não é da alçada dele... o velho percebe e diz:

- Você queria dizer algo?

O mordomo olha para o velho... ele mal conseguia segurar a arma. Tenta arranjar forças para falar algo, mandá-lo para a clínica de novo, pedir mais um dia para ouvir as suas histórias. Mas não, não era da alçada dele. Não era o trabalho dele questionar aquele momento. Não lhe foi pedido sua opinião. Assim, ele olha para o velho e o responde com o rosto olhando para o chão:

- Não, não senhor... Mais alguma coisa?

O mordomo não ouve resposta e volta para o seu lugar. Frank já ergue a voz para cantar o último refrão final. O velho pega a arma, coloca embaixo do queixo, respira fundo. O sol ilumina completamente a sala, um pôr-do-sol lindo... a prataria brilha... as molduras das fotos velhas sobre a escrivaninha cintilam... os lustres de cristal refletem e inundam mais ainda a sala com a luz do sol... a única ação que não chamou mais a atenção do mordomo naquele momento foi o barulho da bala ecoando na sala e o jato de sangue que voa à exatos seis passos dele.

Depois de duas respiradas longas, o mordomo pega o telefone e avisa a polícia do ocorrido. Arranja coragem e vai até o velho. Ao chegar perto, vê os dois olhos abertos, e ele balbuciando algo na sua voz baixa, bastante baixa. Ele se desespera: o que fazer? Quem chamar?

Os olhos do velhos estampam um desespero incomum. Inimaginável. Imensurável. O mordomo pára para pensar... pega o copo ainda meio cheio de whisky, de uma marca que ele adorava, por sinal: um puro malte escocês chamado Laphroaig de 40 anos. Pega seu lenço, sempre no bolso do terno - ordem do velho - e limpa um pouco de sangue do copo. O velho tenta balbuciar algo e o mordomo faz um tranqüilizante shhhhh, pedindo silêncio.

Aquele era o seu momento. Pega uma cadeira próxima e a arrasta até o velho, que sangra como um daqueles animais mortos em festas do interior, numa morte lenta e cruel; a vitrola já trocou de música... agora Frank canta com sua filha Nancy a música Somethin' Stupid e, por incrível que pareça, uma das preferidas do mordomo, que sempre ouvia quando o velho saía de casa - o velho, de alguns anos para cá, não gostava de músicas alegres.

Ele bebe o resto do whisky enquanto acaba a música. O velho tenta pegar a arma e acabar com aquilo tudo, mas o mordomo a pega de sua mão trêmula e diz:

- Ouça... Fly me to the moon começou... já vamos acabar com tudo isso: só um momento, senhor... por favor! Essa música me lembra quando você trouxe todas aquelas vedetes para cá e fez aquele carnaval aqui... acho que até Calígula sentiu inveja aquele dia.

O velho com a respiração forte, lembra desse dia e dá um pequeno esboço de sorriso.

O mordomo pega a arma. Engatilha-a e, de costas para o sol, vira de frente a ele e o observa alguns instantes. Ele amava quando ele estava quase indo embora nesses últimos dias de outono. Ele ia tirando sua luz da sala de forma que parecia uma cortina, o que lembrava ao mordomo que sua arte já tinha acabado, pois o velho ia chegar a qualquer momento; não que isso era ruim, mas o velho chegava em casa e a via impecável, com todas as suas necessidades e mimos prontos para mais uma noite de descanso ou preparação para uma apresentação... ou até quando o velho dormia o dia inteiro após uma noite de boêmia.

O velho já não tem forças e Fly me to the moon está acabando... o sol vai se pondo e o mordomo, já de costas para o pôr-do-sol de novo, vai seguindo a luz do sol sair da sala até a mesma encontrar os olhos do velho. A prataria já não brilha mais, as molduras não cintilam e os lustres necessitam da luz artificial para espalhar a luz. As fotos antigas agora chamam mais atenção que suas belas molduras e os tapetes no chão, ficam lindos como nunca.

Mais um tiro ecoa na sala. A polícia invade o local e vai direto ao encontro dos dois, e quando os encontram, nem estão mais empunhando suas armas. Encontram dois velhos parados e o Frank cantando Loves been good to me... um policial não gosta dessas músicas antigas, dá um tapa na vitrola, aquele som de disco arranhando fica forte e a agulha é empurrada para o fim do disco, naquela parte que ela repete um som diferente, que indica que o disco acabou e é hora de virá-lo ou trocá-lo.

Mas, aquele disco não será trocado ou virado tão cedo, uma vez que mais um cortina se fechou e dois atores acabaram suas peças. Então, o disco aguardará pacientemente ser tocado mais uma vez para começar outra peça, outra arte.

sábado, 8 de setembro de 2007

Horizonte

Ouvindo 311... I'll be here a while. Sem muitos comentários. Só ouçam.
=]


O cara andava no carro com o braço apoiando a cabeça... resignado nos seus pensamentos. E ouvia no radio: "I'll be here a while, ain't going nowhere"... fora a letra que o hipnotizava, a música o mantinha em um estado mais ou menos como se o seu cérebro, ainda que prestando atenção no que estava fazendo e no que deveria fazer (como respirar...), deixasse a mente ir longe. Para lá depois do horizonte. Tão longe que nem a mais alta nuvem dava para ver. E suspirava.

Suspiros não daqueles de novela... forçados... mas daqueles baixinhos, que só o coração ouve; e que depois avisa para o cérebro que ocorreu, para o mesmo enviar aquela feição melancólica para o rosto da pessoa. E não foi diferente com o cara.

Às vezes, com esses sentimentos, nem se sabe o que falta. Ou se falta. Apenas a música faz isso, e isso, apesar da melancolia, é bom: dá uma excelente idéia da nossa pequeninice em relação ao mundo. O cara adorava ouvir essa música, tanto é que se pegava muitas vezes cantando o refrão enquanto trabalhava ou estava parado, sem fazer nada. Ou até imitando os acordes do início da música: tanan-tan-nan-nan-nan-tan-tantan...

São nesses momentos nos quais se se desconecta do mundo ao redor. Só se ouve o barulho maravilhoso do silêncio, e não aquele silêncio vazio, mas como naqueles seriados do Discovery, que mostram os bichos brincando, numa daquelas cenas perfeitas da natureza. O cara conseguia ouvir o som das coisas ao redor do que a tevê mostrava, bem delineado... como uma folha que é pisada pelo ursinho panda numa brincadeira com a mãe, sabe? E registrava cada uma delas, como se fosse única e que nunca mais se repetisse; uma vez que ele sempre achou que um som nunca se repetia. Todo som dependia do momento, acima de tudo.

Mas, o pior era tentar entender como aquela música o afetava tanto. Como que...

"Far is solace in the maddening pace/ sad state written on my face/ not a tight rope walk but dance/ uncertain game of chance/ but I'll see it through in time"

tinha o som perfeito para aquele dado momento; e mesmo que, numa outra vez, sendo o mesmo cara na rádio que pediu a música, o mesmo que colocou para tocar, não ia ser a mesma coisa. Aquele momento estava se esvaindo pelo tempo... e essa era a única idéia plausível para achar que aquela música nunca mais ia se repetir. Ela era única, e estava acabando.

Atrás dos óculos, os olhos se encheram de lágrimas... não sabia mais o que estava acontecendo... e nesse momento:

- Ei, chegamos! Tava viajando, hein? Já pode sair...

O cara responde com um sorriso. Tenta ajeitar o cabelo desarrumado pelo vento, e sai do carro. Fica parado com mais um belo sorriso, olhando para frente. O acompanhante pergunta o que estava acontecendo, preocupado. O cara responde:

- Estou tentando ouvir o horizonte.

O acompanhante lhe entrega a bengala retrátil, o cara ajeita o óculos escuro, tateia o meio fio da calçada com a bengala e pergunta ao acompanhante, na maior felicidade:

- O sol está tão lindo o quanto eu o estou ouvindo?

Amparado pelo braço pelo acompanhante, os dois se dirigem a um lugar que não é necessário saber qual é, mas que será contemplado pela beleza de um outro horizonte: o da nossa própria cabeça.