domingo, 7 de setembro de 2008

Correr gritar sangrar pensar, nessa ordem.

Sempre quis fazer algo com essa música. Sempre achei ela muito louca: Brainstorm, do Arctic Monkeys, cd de 2007 (Favourite Worst Nightmare). Aproveitem. Ahh... estreiando mais novo player... a saga continua !! ahuahuahuahu





Lá no fim daquele corredor se via a luz do sol que brilhava na rua. No outro ponto oposto a porta lá estava eu parado, na escuridão. Eu estava desesperado. Afrouxei um pouco a gravata, deixei o paletó no chão e olhei para o sapato: ia ser complicado ficar com ele, mas seria pior sem ele. E então, eu comecei a caminhar em direção à porta, e fui acelerando, pegando o pique e, quando percebi a primeira gota de suor, comecei a correr freneticamente.

Tipo o Forrest Gump, tipo quem já atravessou o mar Vermelho, igual quem corre do perigo; entretanto, eu não queria parar para abrir a porta. Fechei o olho, coloquei a mão no ouvido, comecei a gritar e fui em direção, à todo vapor, daquela porta. É engraçado... tampei o ouvido... acho que era, basicamente, porque não queria ouvir mais nada do que ocorria. Queria só correr. Gritar foi um capricho mesmo, meio que para assustar, meio que para realmente me isolar acusticamente do resto. E, quando vi, dei com a cara na porta.

A física não falha. E eu não sou nenhum super-herói. Lei de Newton aplicada... a terceira, não é? Sei lá... só sei que do jeito que eu bati nela, eu voltei. Por isso o galo na testa... quem estava de fora da porta e passava perto deve ter se assustado com barulho, já que, depois da batida, fiquei um pouco deitado no chão, analisando, o nariz sangrando. Levantei, abri a porta, dei uns cinco passos para trás, coloquei as mãos nos ouvidos (cada um em seu lado, sem cruzar... sabe? Então...), e saí correndo, gritando e com o nariz sangrando.

Minha gravata estava encharcada de sangue, mas, tudo bem... acho que não precisaria dela mais. E eu corria, assustava as pessoas, ninguém entendia. Só que foi bom, viu! Experiência legal. Eu corri uns cinco quarteirões bem, depois fui cansando. Quando eu vi a loja daquela velhinha hare crishna, que só vende coisa natural - acho que ela vive de fotosíntese - foi que parei. Sei lá... essa coisa espiritual, de, sei lá!, acreditar em algo não-palpável, sempre me intrigou. Nunca tive foi tempo para participar, entende? Vida moderna é foda, cara! Quando se tem 200 canais em casa, home theater, uma LCD e uma jacuzzi é meio competição desleal... [risadinha amarela] Convenhamos, né?

Mas, aí, na loja, eu entrei. Contei para a velhinha a história, que bati na porta, que vim correndo (eu já estava hiper suado... vida sedentária, já viu, né?), que tinha medo dela. E ela me perguntou o por quê disso tudo. Puxa, foi complicado. Fui lá no meu mais profundo eu e vim falando para ela. Acho que resumi minha vida em uns cinco minutos e 40 segundos, sabe? Contei para ela o que estava passando aqui e lá na empresa e tal... ela entendeu e achou legal que eu contasse isso, sabe?

Aquele esquema meio revolução, meio contexto histórico favorável, meio por fogo no mundo e tal. Por isso, aqui... nessa documentação está o que vocês precisam para por fogo no mundo... devo ter perdido alguns papéis na correria, mas eu vim direto; ela me deu um chá de ervas que, putz!, eu pensei tudo que eu não tinha pensado na minha vida inteira. Algo imprescionante. Meio sem noção, pensando sem pensar no que tá pensando, aquele mar de idéias, aquelas tempestades... brainstorm, sabe?

Mas, assim, não fiquem achando que com essa papelada vocês irão dominar o mundo... hã hã! Do lado de lá é pior. Eles tem até a cor preferida da filha mais nova da empregada, que só vai uma vez por semana, de vocês. Por isso o fogo no mundo, entendeu? E, ó, vou voltar correndo para lá. Tenho ainda mais coisas para fazer, tipo uma revolução, sabe?

Só para saber: algum de vocês tem um fósforo aí? Esqueiro, não... fós-fo-ro... É mais glamour... e, ó, avisa para o segurança que eu não tenho AIDS não... falei só para eles me deixarem passar. Engraçado como todos nós temos medo, não é? Nem importa tamanho nem nada. E nem bomba... quer dizer, a velhinha me deu uma dinamite aqui, mas, pô, é só de erva, essas coisas que ela vende: incenso e tal. Vou até deixar aqui.

Última coisa... ó, obrigado pelo fósforo... então, aqueles lenços de papel, sabem? De limpar, todo perfumado. Alguém tem? Tenho meio uma paranóia quando vejo meu sangue... opa! Obrigado, moça, vou levar a caixa, tá? E obrigado a todos pela atenção, vou sair de fininho, sem atrapalhar ninguém.

[Vai fechando a porta e, antes de fechá-la, num espaço onde só cabia o rosto dele, ele vai fechando e mostrando o sorriso, no mínimo, complexo que ele dava. Sorriso que nunca mais sairia da cabeça de ninguém; nem minha, nem sua.]

terça-feira, 29 de julho de 2008

Sonho e Loucura

Voltando devagar à escrever, começo a escrever esse que sempre quis. Com a música Prehensile Dream do The Bad Plus, banda de jazz que sempre gostei. A música é do CD Suspicious Activity de 2005 e vale muita a pena ouvir, é espetacular.

p.s.: troquei o servidor de podcast. Deu errado e cansei de procurar um podcast host bom... então vamos de youtube mesmo. =]



Olívio ia dormir sempre do mesmo jeito: no seu pijama de seda, na sua cama king size, com a mulher que todos desejavam, na mansão que todos sonhavam. Apesar da sua idade - estava na casa dos cinqüenta - sentia-se jovem o bastante para almejar sempre novos objetivos. Muitas vezes era por pura ganância; era simplesmente por querer "colecionar troféus", materializar as coisas e as pessoas. Por isso, era considerado um homem rico, bem sucedido, mas pouco ligado a valores sentimentais. Perguntavam-lhe o por quê de ser assim tão arrogante; ela respondia que era porque ele merecia.

Merecimento foi a palavra que cerceou a vida dele e, toda noite, quando ele ia dormir, lembrava-se dos seus maiores feitos e conquistas; no fundo da sua mente, ele ouvia uma pergunta, bem baixinho, que indagava se tudo aquilo valia a pena. Por isso ele sempre demorava para pegar no sono e dizia que tinha um pouco de insônia pela preocupação que os negócios lhe davam. Mas não, era sempre aquela auto-crítica que o corroía. E Olívio se sentava na cama, olhava seu quarto gigantesco por inteiro e sentia-se vazio. Sempre que ficava assim, costumava pegar uma colher de prata que o pai dele lhe havia dado logo quando Olívio saiu de casa para fazer a vida e lhe fez prometer que só usaria aquela colher em um momento nos qual não havia mais saída, a não ser se desfazer daquele talher.

Enquanto fitava a colher, o sono vinha e o embalava, debaixo de maravilhosos lençóis de cetim e edredons importados. Seu olho fechava e ele esperava um sonho; este que não vinha novamente havia anos, muitos anos. Foi quando tinha uns dezesseis anos, na noite de Natal, quando sonhou com um brinquedo que nunca teve. Desde lá, nem sequer um pesadelo preenchia suas noites de sono. E ainda com a colher na mão, ele sentiu-se ficar leve, naquele momento que o sono vem e nos leva.

Logo depois, sente o sol nos seus olhos, atrapalhando seu sono. Perguntou-se se já era de manhã. Nesse pequeno momento de lucidez percebeu que seu colchão não estava muito bom e que tinha passado um pouco de frio à noite, além de perceber alguns cheiros diferentes no lugar. Ele tenta fechar os olhos para dormir e não consegue. Ficava imaginando quem pode ter sido a pessoa que abriu as cortinas da janela. Olívio, então, abre os olhos por completo. Não vê as cortinas e nem as janelas, nem seu closet gigantesco, nem sua cama, nem seus lençóis, nem nada. Seria um sonho? Finalmente ele estava sonhando? E então, tenta se levantar, mas percebe que dormiu no chão e só se senta. Olha para a frente, no horizonte, o sol está nascendo com sua cor e calor únicos; o que deixa Olívio maravilhado, pois fazia tempo que não prestava atenção nisso.

Mas, tinha algo errado. Quando consegue se acostumar com aquela luz no rosto, vê que está dormindo na marquise lateral de um restaurante de posto de gasolina. No chão, em meio a trapos, com mais gente. Parecia sua família, pois havia duas crianças e uma mulher, como na vida real. Acha engraçado a verosimilhança entre o sonho e a vida real, e, para finalizar as coincidências, ele sente fome. Mas, uma fome que nunca sentiu: aguda e persistente, fazendo-o assustar com o que estava sentindo e procurar formas para sair daquele sonho. Tenta se levantar, mas tem dificuldade, pois encontra vários machucados pelo corpo e um sapato seu não tem sola quase nenhuma.

Olívio verifica suas roupas. Todas sujas e rasgadas, seu cobertor era horrível e pequeno para o corpo dele e mais ao lado tinha uma pequena mochila com seus pertences. E como ele fedia; não estava se aguentando. Esse sonho estava real demais. E então ele caminha em direção ao posto e tenta falar com um dos frentistas; sem sucesso, é mal tratado e escurraçado pelo rapaz... que, aproveita, e pede para ele sair dali para não espantar os clientes.

Olívio começa a se desesperar com aquilo tudo... caminha de costas olhando para o frentista, assustado; tropeça e cai. Ao cair, olhou para cima e o céu estava lá, azul e lindo ainda - naquele momento lhe deu uma paz tão grande, achou que ia voltar do sonho. Bateu a cabeça no chão com tudo e fechou os olhos. Quando abriu-os novamente, o mesmo céu. Fecha e abre-os de novo. O mesmo céu de novo. Levanta, agora com um galo na cabeça e vai para onde estão as suas coisas.

Chegando lá, olha ao lado, vê a mulher e os filhos. Acorda-os e tenta se explicar. Eles só falam que estão com fome e aonde seria melhor para mendigar. Olívio os ignora e pega sua mochila ouvindo os gritos de sua mulher e filhos perguntando aonde ele iria. Ao pegar sua mochila, algo cai no chão e o barulho o chama a atenção... parecia familiar. Ao olhar, verifica que é a colher de prata do seu pai, da escrivaninha do lado da cama de dormir...

Mas que cama, que escrivaninha, que pai? Ele não era mais ele mesmo. Era um indigente! Fora de si, pega a colher e a joga longe... grita e se desespera mais ainda. Xinga a tudo e todos, roga pragas. Sua família vem atrás dele e não entende o que ocorre; nesse meio tempo, alguns funcionários do posto já tentam expulsar a família de mendigos do local. Olívio já se dirigia à rodovia e, ao passar pela colher que havia jogado longe, a pega e a inspeciona... está limpísima... tanto que na cavidade côncava consegue ver uma imagem do seu rosto: uma barba espessa e suja, cabelo mal cortado e grande, dentes sujos e boca machucada.

Segurando a colher, sai correndo desesperadamente deixando a confusão para trás, até que fica num lugar mais silencioso. Olha para trás... sua família acaba de sair do posto. E o segue de longe, uma distância boa. De onde está, consegue ver a sua mulher gesticulando para ele esperar. Olívio pensa. A colher é apertada pela sua mão direita e, desse jeito, resolve ir em direção da sua família.

No meio do caminho, desvia do caminho e vai para o meio da rodovia. Um caminhão vem na direção contrária em alta velocidade, tenta frear e desviar. Não consegue e pegará Olívio em cheio. No segundo antes, vem tudo à sua mente: quem ele era, o que ele fazia, o que ele queria... tudo fica claro e simples.

No segundo depois, ele acorda como se fosse de um susto e dá aquela respirada funda. Está em uma cama. Em um hospital, ligado à vários aparelhos que, com a súbita levantada da cama, se desconectam e começam a apitar freneticamente. Logo depois, entra uma enfermeira que o olha e sai pelo corredor dizendo alguma frase que foi difícil de entender... falando como se ele tivesse acordado. Ela volta e diz para ele se acalmar, pois tinha acabado de acordar de um coma. E que tudo seria explicado.

Ele olha ao redor. Não reconhece nada. Passa o olho na escrivaninha ao lado da sua cama... fica tentado ao abrí-la, não sabia por quê. Ele vai a abrindo devagar, e vai se formando a imagem de uma colher de prata. Olívio a pega e sente algo muito estranho, sabe que ela é mais que uma colher... é como uma chave. Nesse momento, ele percebe que não sabe quem é, não sabe o que estava fazendo ali. Então, ele deita... pela janela do quarto o céu estava azul. Segurando fortemente a colher, ele fecha os olhos e dorme novamente.

domingo, 6 de abril de 2008

Caminhos cruzados

Como faz tempo que não entro e não posto nada... vou recomeçar devagarzinho. Mas, estou cheio de idéias... :D
Esse conto vai para a minha namorada Flávia, que faz da minha vida um belo conto de amor. Música do Monobloco, show ao vivo em 2005, um pout-pourri de Orixás (do próprio Me Anunciação (essa do mega Alceu Valença).


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Um certo rapaz viajava por uma estrada. Sua cabeça estava focada na estrada, seus sentidos aguçados para não passar por problemas. Mas, sua mente estava longe. Há quilômetros dali... tentando imaginar como batia o coração de uma mulher. Uma não, a sua amada, 'A' mulher. A que provocava suspiros nele de forma quase cadenciada. Suspiros quase religiosos, diários, longos e que davam até pena caso você prestasse atenção.

Já no seu destino, numa avenida que o levava em casa, mas que tinha o mesmo nome da cidade onde seu amor estava, uma avenida reta e tranqüila de andar... ainda mais num domingo na hora do almoço. Então, ele parou no primeiro semáforo e fechou os olhos. Imaginou que a avenida o levaria para ficar do lado do seu amor, na cidade de mesmo no me da avenida.

Uma buzina repentina mostrou que mais alguém queria chegar no seu destino, seja esse qual fosse. Ele acelera e começa a imaginar a avenida como uma ponte, que iria deixá-lo em frente à nova morada.

Numa sacada do destino, ele lembrou que a casa dos pais dela ficam em quarteirão cuja rua corta essa avenida. E que esse quarteirão é delimitado por essa avenida. Que coincidência engraçada. Será o destino? Seria um sinal?

Para ver se não haveria alguma mandinga ou amarração nisso tudo, perto da rua aonde os pais da sua amada moravam, ele tem a seguinte idéia: dar a volta no quarteirão e pensar forte que a avenida iria levá-lo para aonde ele mais queria. Ele dá a volta no quarteirão, olha a casa dos pais da sua amada, pensa bem forte e tem um passageiro sentimento que isso daria certo. Dá uma acelerada para dar a volta no quarteirão mais rápido possível. Volta a avenida... faltando já poucos metros para ela acabar, num semáforo. Dá uma acelerada, pega uma impulsão (ele tinha a certeza que o fim da avenida era o início de uma linha reta que acabaria na janela dela), e em segundos estaria do lado dela.

No fim da avenida, tem outro semáforo. Ele estava verde, daria para pegar o impulso; entretanto, no último segundo, ele fechou e o vôo teve que ser abortado.

Porém, o rapaz não ficou triste. Achou engraçado o destino brincar com ele. E o destino provou que eles ficariam juntos ainda muito tempo, o sinal estava verde para qualquer coisa, menos naquele momento... era para aumentar a saudade e o reencontro ser melhor.

E para fechar, o destino ainda mostrou, com total certeza, que tudo aquilo gerou um suspiro na sua amada, seguido de um belo sorriso (daqueles que hipnotizavam o rapaz) e um pensamento demorado nela, que girava em torno da idéia do tamanho do amor dos dois; mas, girou também em torno da idéia fixa em relação ao tanto que o rapaz era bobo, um crianção, o neném dela. Isso fez, e eu sei que fez, os dois sorrirem ao mesmo tempo e terem cada vez mais a certeza dos sentimentos. E o destino ainda os fizeram olhar para o céu ao mesmo tempo, olhando para o mesmo lugar. Só para provar que ainda fará muita coisa pelos dois.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Alma vira-lata

Um dia de cão é um dia de cão. E cachorro é um animal que sabe como derreter o que quiser, chegando a ser insuportável às vezes sua dedicação. E quando falo em cachorro eu disse cachorro, não alguns animais malucos que saem matand0 velhinhas inocentes. História baseada, e bem "ficcionada" (não teve nenhuma cheirada na realidade), numa passagem ocorrida com a grande amiga Eugênia, mais uma vez ajudando o blog andar. Para acompanhar, Tim Maia cantando Réu Confesso, que confesso, não combina no início, mas do meio pro fim...


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Em uma tarde comum, daquelas de demoram para passar, daquelas que dá para se ouvir os passarinhos cantarem e brincarem na fonte mais próxima... que o carteiro faz suas entregas preguiçosamente pensando em coisas que estão bem longe dali, mas bem mesmo; entretanto, ela estava irritadíssima. Parecia uma versão feminina do personagem principal do filme "Um dia de fúria", mas sem armas de fogo; suas armas eram o olhar fulminante e imperdoável, os passos fortes indicando uma raiva incomensurável, lembrando uma marcha de exército.

Pensava em como seria interessante um míssil cair nos prédios a frente dela, ou uma acidente envolvendo 53 carros, ou até a explosão da padaria do português: ia ser ótimo vê-lo correndo e gritando: "esqueci o fogão ligado de novo, ó-pá!" e um sonoro bum! vir depois. Mas, o que ela queria que voasse pelos ares era o banco que ela acabou de sair: muito quente, cheio de gente e não resolveu nada que era tão urgente. Nem a rima impensada tirou um sorriso dela. Marimbondos desviavam dela, cachorros bravos nem ousavam fitá-la, velhinhos rabugentos a temiam.

E para fechar o pacote de ódio puro, seu cadarço desamarra. E ainda o esquerdo! Ela percebe o problema, mas pensa primeiramente num milésimo de segundo antes de esbravejar mais um pouco: "Deus está me testando". Agacha para arrumar o bendito cadarço e pronta para imaginar um acidente atômico, sente algo cheirar ali por perto aonde ela estava. Torceu de coração para ser um tarado para ela poder socá-lo até a morte dele, depois chutá-lo até passar sua raiva.

Olha para trás, um vira-lata. Filhote, daqueles indefesos, deitados no chão. cara de sofrimento puro, olhos grandes e negros, focinho molhado. Pele negra, com umas manchinhas douradas. Rabinho parecendo uma minhoca viva no anzol, não para um segundo. O pelo bastante bagunçado: era um cachorro-filhote-mendigo.

Mas, nem esse pacote desbanca o ódio na garota. Apesar de que, por um momento, ele abaixou a guarda dela muito rapidamente. Ela dá uma ignorada no cachorro, que aumenta a intensidade da cara de dó. Ela levanta, se ajeita um pouco e continua a caminhada; mas, agora sem pensamento... pois só ouve alguns pequenos batidos de unha no chão, daqueles que passam despercebidos porque qualquer ser normal. Entretanto, para ela, reverberavam em todos os nervos do seu corpo, aumentando seu ódio.

Ela vira para escurraçar o cachorro, empacotá-lo e enviá-lo para o lugar mais ermo do mundo, e quando ela encara o cachorro... ele olha para lado, dá uma latida e vai em direção para onde ele latiu, no meio de um gramado de uma praça.

Melhor assim!, a estressada pensa. Continua seu caminho, e quando percebe, o maldito cachorro sai de uma moita, tentando voltar a segui-la em escondido. Ela deixa-o chegar perto e se volta a ele e grita, num momento de vitória:

- Ha! Ha! Te peguei!

O cachorro senta, olha para ela com a cara meio torta, põe a língua para fora, faz um grunhido de "que que você quis dizer?". Depois tenta coçar a orelha e cai no chão por falta de equilíbrio. E assim, os dois vão, até a porta da casa dela; aonde ela se despede de seu guarda-costas, ambos mais alegres, fecha o portão e segue sua vida.

Um dia depois, ela está no sofá, derretida, assistindo televisão. Compenetrada no que via, o vira-lata era quase uma lembrança vaga. Até que um latido forte estremece a sala. A garota quase sofre um enfarto e quando vê é o vira-lata de ontem, com uma cara de fome espantosa. Mas como? Depois foi descoberto que ele entrou por um pequeno vão no portão e escondeu-se na garagem, que já fedia como ele.

Pulguento e fedido, tinha uma cara de mané inconfundível que era apaixonante, e era assim que ele comparecia a reunião familiar para deliberação acerca de sua situação: ficaria ou iria de volta para rua? No outro minuto, já estavam escolhendo seu nome, ligando para a veterinária e a mãe já imaginando-o com roupinha de frio em agosto.

Por um humor negro momentâneo da família, ele foi batizado de Somália, uma vez que fome era algo que ele tinha 22 horas por dia; nas outras duas ele dormia. E também foi o nome menos polêmico. As outras opções eram Edir Macedo e Maomé. A garota que o achou queria demais Edir Macedo, mas os vizinhos evangélicos não iriam gostar de gritos como "pega, Edir! Pega!" e um vira-lata ir na direção do perigo. Atitudes assim não são nada diplomáticas e podem iniciar uma guerra.

Somália, claramente, preferia a menina que ele perseguiu dias anteriores. Brincava, fazia poses, chamava a atenção dela. Ele tinha uma carência enorme de uma figura materna e a elegeu sua "mãe". Apesar de parecer uma cadela no mundo dos cachorros, se sentiu lisonjeada com o novo cargo. E pensava, sentada na varanda e vendo o cachorro brincar com flores e bichinhos, como era bom ser vira-lata. Vira-lata mesmo. De rua. Que tem essa alma tão simples, humilde e pura. Era um cachorro dissimulado quando queria algo, sincero e amigo quando via alguém triste e bravo e valente (até certo ponto) quando sentia perigo. E vivia pelo mundo sem angústias.

E tentou imaginar o por quê dele ser tão ligado a ela a ponto de que a mãe da família falar que a garota era a mãe do Somália. Olhava para longe, no horizonte e se perguntava: eram instintos maternos aflorando apenas? Ela já cheirava como uma mãe? E quando ele crescer e sair de casa? E também a garota ainda se sentia muito nova para ser responsável por outro ser vivo! Não se sentia preparada! E uma angústia tomou seu íntimo a ponto que já imaginava ela deixando o Somália morrer de fome, de sede, algo bizarro assim... até que ele veio brincando com um graveto na boca para o lado dela. Ao vê-lo, toda a angústia sumiu.

O que apareceu foi uma vontade de pegar o graveto da boca dele e brincar. Não titubeou, pegou o graveto, ficou brincando como o mesmo no ar, fazendo o Somália tentar pegar: pulando e ficando em pé. Por fim, fingiu jogar o graveto longe e escondendo-o atrás de suas costas, fazendo o cachorro sair igual um desesperado na direção do jardim, bater numa cadeira, tropeçar num dos degraus da varanda e revirar o jardim atrás do graveto.

Tinha mil gravetos no chão, mas nenhum servia, apesar do vira-lata morder e babar em todos. A garota pensou: "cachorro burro!" e tentou avisá-lo que estava na mão dela o graveto. Depois de certa insistência, Somália entendeu e voltou para perto dela. Ela repetiu todos os passos da brincadeira e repetiu que ele era um cachorro burro. Mas, no fim, entendeu que o que atraía o Somália nela era um pouco de alma de vira-lata que ela tinha. E um pouco do sentimento materno inerente nas mulheres, claro! Senão, ela não amarraria o cadarço logo aonde o Somália estava lá na praça desde que nasceu.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Fogos

2007 já foi, não é? Então falaremos de 2008, pois o ano que passou foi interessante: cheio de boas idéias, bons aprendizados; mas com muitas pancadas. Alguém deve ter me avisado para pisar devagarinho em 2007, mas não ouvi, eu imagino. No som, Originais do Samba com Alguém me avisou. Uma das músicas que moldam meu caráter quando isso é necessário. Já sabem como que funciona, né? Aperta o play e, como diria umas certas mulheres, :P vai.


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Esse ano foi difícil para o Pedro. E estava terminando de forma pior: tinha arrumado um bico como vigia de fogos de artifício. Ele era o responsável por iniciar a cadeia de explosão dos fogos, que seguiam uma certa ordem e, assim, formavam diferentes formas no ar. Além de óbvio, garantir que explodam. Faltavam poucos minutos e ele não poderia estar mais deprimido.

Tentava pensar que tudo aquilo valeria a pena, pois ajudaria sua família a ter um primeiro dia de ano melhor. E enquanto pensava nisso tudo, colocava sua "farda" de segurança: capacete, roupa anti-fogo, botas anti-fogo, máscara e protetores de ouvido. Foi para trás de sua cabine de segurança, deu os últimos comandos de direção na balsa e esperou a contagem.

A cada segundo que ia contado na regressiva, ele pensava em alguma coisa importante. No primeiro, o décimo, ele pensou no dia que nasceu. Não lembrava de nada, óbvio! Mas, se perguntava se ele havia trago felicidade para lar que entrou. Lembrou de fatos da infância simples e no nono segundo lembrou do seu pai comemorando um gol que ele fez no campeonato da favela... um golaço, levando o título do campeonato dos meninos menores de sete anos. Viu sua mãe chorando ao ver ele comemorando o gol e não ficou triste ao perceber que não tiravam fotos dele, como a família de alguns amiguinhos mais abastados.

Mas, tudo bem! Tudo bem devagarzinho na vida, no oitavo segundo, pensou na foto que fez do filho que nasceu a alguns meses. Comprou uma câmera daquelas digitais, de última geração... financiou até o máximo que podia e que deixou em suaves prestações. Todas válidas! Tirou fotos digitais do seu filho. Uma felicidade única! No sétimo segundo, lembrou da sua irmã: ô menina que foi encapetada, credo! Hoje, enfermeira Madalena. Ajudou em tudo no parto do seu filho. Da cama ao médico, conseguiu tudo com a sua simpatia e beleza. No bom sentido, claro.

No sexto segundo, lembrou da irmã tentando ensinar o que era ética para ele e o irmão quase da mesma idade, o Tiago. Tinham acabado de roubar dois doces da padaria do Badeco. Achavam ruim porque ela ficava assim só porque estava estudando, quase entrando na faculdade. Quinto segundo e diminuindo, e pensava sobre ética. Torcia para que ela se espalhasse pelo mundo nesse novo ano.

No quarto segundo, lembrou da Bahia e que veio de lá muito pequeninho, da família, da história sofrida, das batalhas ganhas. Prometeu que iria voltar para lá esse ano, só para ver se estava tudo certo, tudo no lugar. No terceiro segundo, prometeu ensinar samba para o seu filho o mais rápido possível, para quando voltar para a Bahia, o filho já ser estrela. O menino não poderia não herdar do pai a arte da dança! Lembrou do rosto dele ao sair de casa, pois explicou para ele que iria fazer o céu brilhar hoje como nunca brilhou. No seu colo, Pedro apontava para o céu e explicava que aquilo ia brilhar hoje por conta dele; e, num momento único, viu o sorriso encantador da sua mulher, cuja beleza não foi castigada pelas dificuldades da sua vida.

No segundo segundo, pensou que era engraçado falar "segundo segundo" para explicar que faltava dois segundos para o ano novo e lembrou que, quando ainda tentava só dar um belo beijo na sua esposa, pedia a Deus encaricidamente dois segundos da atenção dela. Teve os dois segundos, conseguiu abrir uma pequena brecha naquele coração. Mas precisou de mais de dois meses para arrancar o primeiro beijo. E no primeiro segundo, pensou na sua mãe e no seu pai. Mãe e pai... mãe que sempre avisava para ele para pisar nesse chão devagarzinho, bem "devagarinho". E o pai, sempre um pouco imediatista, falava que samba e mulher só daria em problema para a vida dele. E culpava a mãe por ter colocado ele no samba, entretanto, no fundo, tinha uma baita inveja dos dois.

Pedro aperta o botão. Os fogos começam a explodir numa sintonia única. Parece que diziam para ele que o ano novo seria maravilhoso. Que a banda de pagode ia virar sucesso. Que o filho ia ser ponta esquerda e jogar na Europa. Que a mulher dele ia continuar aquela pessoa que encantou ele demais. Que os irmãos continuariam sendo seu porto-seguro e que a irmã dele, caso ouvisse seus pensamentos, ia falar que ele sofre de queísmo. Que, quer dizer... ahh! Que sua mãe e seu pai ficariam fortes para vê-lo ser tudo que eles sonharam.

Pedro sai um pouco para fora da cabine de proteção e começa a tirar fotos dos fogos de artifícios. Emocionado, tiras as melhores fotos da vida. As melhores fotos do início da sua nova vida. E nos primeiros segundos do novo ano, começou a pensar em tudo que seria bom: aprender com os erros e sempre procurar evoluir de forma positiva. Não sabia de onde tinha tirado essa idéia, mas sorriu ao pensar nelas... e pediu, lá pelo vigésimo segundo do novo ano, sempre pensar na vida, chorar e rir.

* * *

Nota: dizem que algumas pessoas são escolhidas por alguém maior para contarem seus dez últimos segundos do ano como se fossem os últimos mesmo, pois a partir desse dia tudo iria mudar. Mudar para melhor. E dizem que vale contar dez segundos em qualquer momento. Esse ser maior é super tranqüilo com esse negócio de regras. Eu acredito nisso horrores.