sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Alma vira-lata

Um dia de cão é um dia de cão. E cachorro é um animal que sabe como derreter o que quiser, chegando a ser insuportável às vezes sua dedicação. E quando falo em cachorro eu disse cachorro, não alguns animais malucos que saem matand0 velhinhas inocentes. História baseada, e bem "ficcionada" (não teve nenhuma cheirada na realidade), numa passagem ocorrida com a grande amiga Eugênia, mais uma vez ajudando o blog andar. Para acompanhar, Tim Maia cantando Réu Confesso, que confesso, não combina no início, mas do meio pro fim...


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Em uma tarde comum, daquelas de demoram para passar, daquelas que dá para se ouvir os passarinhos cantarem e brincarem na fonte mais próxima... que o carteiro faz suas entregas preguiçosamente pensando em coisas que estão bem longe dali, mas bem mesmo; entretanto, ela estava irritadíssima. Parecia uma versão feminina do personagem principal do filme "Um dia de fúria", mas sem armas de fogo; suas armas eram o olhar fulminante e imperdoável, os passos fortes indicando uma raiva incomensurável, lembrando uma marcha de exército.

Pensava em como seria interessante um míssil cair nos prédios a frente dela, ou uma acidente envolvendo 53 carros, ou até a explosão da padaria do português: ia ser ótimo vê-lo correndo e gritando: "esqueci o fogão ligado de novo, ó-pá!" e um sonoro bum! vir depois. Mas, o que ela queria que voasse pelos ares era o banco que ela acabou de sair: muito quente, cheio de gente e não resolveu nada que era tão urgente. Nem a rima impensada tirou um sorriso dela. Marimbondos desviavam dela, cachorros bravos nem ousavam fitá-la, velhinhos rabugentos a temiam.

E para fechar o pacote de ódio puro, seu cadarço desamarra. E ainda o esquerdo! Ela percebe o problema, mas pensa primeiramente num milésimo de segundo antes de esbravejar mais um pouco: "Deus está me testando". Agacha para arrumar o bendito cadarço e pronta para imaginar um acidente atômico, sente algo cheirar ali por perto aonde ela estava. Torceu de coração para ser um tarado para ela poder socá-lo até a morte dele, depois chutá-lo até passar sua raiva.

Olha para trás, um vira-lata. Filhote, daqueles indefesos, deitados no chão. cara de sofrimento puro, olhos grandes e negros, focinho molhado. Pele negra, com umas manchinhas douradas. Rabinho parecendo uma minhoca viva no anzol, não para um segundo. O pelo bastante bagunçado: era um cachorro-filhote-mendigo.

Mas, nem esse pacote desbanca o ódio na garota. Apesar de que, por um momento, ele abaixou a guarda dela muito rapidamente. Ela dá uma ignorada no cachorro, que aumenta a intensidade da cara de dó. Ela levanta, se ajeita um pouco e continua a caminhada; mas, agora sem pensamento... pois só ouve alguns pequenos batidos de unha no chão, daqueles que passam despercebidos porque qualquer ser normal. Entretanto, para ela, reverberavam em todos os nervos do seu corpo, aumentando seu ódio.

Ela vira para escurraçar o cachorro, empacotá-lo e enviá-lo para o lugar mais ermo do mundo, e quando ela encara o cachorro... ele olha para lado, dá uma latida e vai em direção para onde ele latiu, no meio de um gramado de uma praça.

Melhor assim!, a estressada pensa. Continua seu caminho, e quando percebe, o maldito cachorro sai de uma moita, tentando voltar a segui-la em escondido. Ela deixa-o chegar perto e se volta a ele e grita, num momento de vitória:

- Ha! Ha! Te peguei!

O cachorro senta, olha para ela com a cara meio torta, põe a língua para fora, faz um grunhido de "que que você quis dizer?". Depois tenta coçar a orelha e cai no chão por falta de equilíbrio. E assim, os dois vão, até a porta da casa dela; aonde ela se despede de seu guarda-costas, ambos mais alegres, fecha o portão e segue sua vida.

Um dia depois, ela está no sofá, derretida, assistindo televisão. Compenetrada no que via, o vira-lata era quase uma lembrança vaga. Até que um latido forte estremece a sala. A garota quase sofre um enfarto e quando vê é o vira-lata de ontem, com uma cara de fome espantosa. Mas como? Depois foi descoberto que ele entrou por um pequeno vão no portão e escondeu-se na garagem, que já fedia como ele.

Pulguento e fedido, tinha uma cara de mané inconfundível que era apaixonante, e era assim que ele comparecia a reunião familiar para deliberação acerca de sua situação: ficaria ou iria de volta para rua? No outro minuto, já estavam escolhendo seu nome, ligando para a veterinária e a mãe já imaginando-o com roupinha de frio em agosto.

Por um humor negro momentâneo da família, ele foi batizado de Somália, uma vez que fome era algo que ele tinha 22 horas por dia; nas outras duas ele dormia. E também foi o nome menos polêmico. As outras opções eram Edir Macedo e Maomé. A garota que o achou queria demais Edir Macedo, mas os vizinhos evangélicos não iriam gostar de gritos como "pega, Edir! Pega!" e um vira-lata ir na direção do perigo. Atitudes assim não são nada diplomáticas e podem iniciar uma guerra.

Somália, claramente, preferia a menina que ele perseguiu dias anteriores. Brincava, fazia poses, chamava a atenção dela. Ele tinha uma carência enorme de uma figura materna e a elegeu sua "mãe". Apesar de parecer uma cadela no mundo dos cachorros, se sentiu lisonjeada com o novo cargo. E pensava, sentada na varanda e vendo o cachorro brincar com flores e bichinhos, como era bom ser vira-lata. Vira-lata mesmo. De rua. Que tem essa alma tão simples, humilde e pura. Era um cachorro dissimulado quando queria algo, sincero e amigo quando via alguém triste e bravo e valente (até certo ponto) quando sentia perigo. E vivia pelo mundo sem angústias.

E tentou imaginar o por quê dele ser tão ligado a ela a ponto de que a mãe da família falar que a garota era a mãe do Somália. Olhava para longe, no horizonte e se perguntava: eram instintos maternos aflorando apenas? Ela já cheirava como uma mãe? E quando ele crescer e sair de casa? E também a garota ainda se sentia muito nova para ser responsável por outro ser vivo! Não se sentia preparada! E uma angústia tomou seu íntimo a ponto que já imaginava ela deixando o Somália morrer de fome, de sede, algo bizarro assim... até que ele veio brincando com um graveto na boca para o lado dela. Ao vê-lo, toda a angústia sumiu.

O que apareceu foi uma vontade de pegar o graveto da boca dele e brincar. Não titubeou, pegou o graveto, ficou brincando como o mesmo no ar, fazendo o Somália tentar pegar: pulando e ficando em pé. Por fim, fingiu jogar o graveto longe e escondendo-o atrás de suas costas, fazendo o cachorro sair igual um desesperado na direção do jardim, bater numa cadeira, tropeçar num dos degraus da varanda e revirar o jardim atrás do graveto.

Tinha mil gravetos no chão, mas nenhum servia, apesar do vira-lata morder e babar em todos. A garota pensou: "cachorro burro!" e tentou avisá-lo que estava na mão dela o graveto. Depois de certa insistência, Somália entendeu e voltou para perto dela. Ela repetiu todos os passos da brincadeira e repetiu que ele era um cachorro burro. Mas, no fim, entendeu que o que atraía o Somália nela era um pouco de alma de vira-lata que ela tinha. E um pouco do sentimento materno inerente nas mulheres, claro! Senão, ela não amarraria o cadarço logo aonde o Somália estava lá na praça desde que nasceu.

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